Em 21 de março, pela primeira vez, o Conselho Federal de Medicina (CFM) soltou nota posicionando-se em relação à questão do aborto e sobre o projeto de reforma do código penal que exclui de ilicitude o aborto feito até a 12° semana de gestão e regulamenta a jurisprudência no caso de aborto de anencéfalos.
Antes de comentar a posição do CFM, quero apresentar os dados sobre o aborto no Brasil e iniciar o debate sobre a primeira perspectiva que temos quando defendemos a descriminalização e legalização do aborto: a saúde pública.
A última Pesquisa Nacional sobre Aborto no Brasil, realizada em 2010 pela Universidade de Brasília, revela que uma em cada sete brasileiras entre 18 e 39 já realizou ao menos um aborto na vida, o que equivale a 5 milhões de mulheres. Revela também que, dentre o total de mulheres que declararam terem feito aborto, 64% são casadas e 81% já são mães e realizaram o aborto no centro do período reprodutivo (entre 18 e 29 anos).
O principal método de aborto foi a utilização do Cytotec (Misoprostol), medicamento que, sem supervisão médica, traz graves consequências, dentre as principais o de hemorragia abundante. O estudo revela ainda que 55% das mulheres que fizeram aborto ficaram internadas em razão do procedimento, e que 65% dessas mulheres são adeptas de alguma religião.
Os dados, por si só, já poderiam justificar a política primeira de descriminalização do aborto para que a mulher que recorreu ao processo de forma insegura possa ser atendida de maneira adequada e, segundo, a defesa da legalização para que o Estado garanta o aborto seguro com todos os procedimentos técnicos adequados, uma vez que só descriminalizar não resolve o problema de que as mulheres continuarão fazendo aborto inseguro.
A prática do aborto clandestino é a quinta maior causa de internação hospitalar de mulheres no SUS, respondendo por 9% das mortes maternas e 25% das causas de esterilidade por problemas tubários. Cerca de 60% dos leitos de ginecologia no Brasil são ocupados por mulheres com sequelas de aborto.
Diante desses números, está mais que na hora de debater a garantia legal do aborto e colocar na perspectiva de que é um problema de saúde pública, responsabilizando o Estado em relação à vida dessas mulheres, considerando o aborto como um problema de saúde a ser enfrentado.
A segunda perspectiva a ser colocada nesse debate, e reafirmada sempre que o fazemos, se situa na esfera da defesa de nossa autonomia, tanto nas escolhas, como sobre nosso corpo e nossas regras. Questão essa que problematiza o patriarcalismo de nossa sociedade, o controle e a mercantilização de nossos corpos. Tem haver também com o reconhecimento das mulheres como sujeitos de suas vidas e de ruptura com o controle imposto sobre a vida das mulheres, desnaturalizando a maternidade e separando sexualidade de reprodução.
É a partir desse aspecto que quero tratar do posicionamento do Conselho Federal de Medicina.
Embora seja um avanço a defesa pela reforma do artigo 128 do código penal, que prevê o aborto até a 12 semana de gravidez, é preciso problematizar os limites do que foi apresentado e do que o CFM defende quando colocamos em questão a autonomia da mulher. Claro que é um avanço ao tirar da esfera da criminalidade, mas não avança como diz no que tange à questão da autonomia, senão que recoloca a visão tutelar sobre o corpo da mulher e a reprodução, vejamos:
“Com base em aspectos éticos, epidemiológicos , sociais e jurídicos, as entidades defendem a manutenção do aborto como crime, mas acham que a lei deve rever o rol de exclusão onde há ilicitude” (CFM)
E um pouco mais a frente afirma: “é importante frisar que não se decidiu serem os Conselhos de Medicina favoráveis ao aborto, mas, sim à autonomia da mulher e do médico. Neste sentido as entidades concordam com a proposta em análise no âmbito do Congresso Nacional. (CFM)
A proposta à qual se refere o Conselho Federal de Medicina é a de reforma do Código Penal que prevê nova redação ao artigo 128, o qual exclui a criminalização do aborto nos seguintes casos:
I – quando “houver risco à vida ou à saúde da gestante”;
II – se “a gravidez resulta de violação da dignidade sexual, ou do emprego não consentido de técnica de reprodução assistida”;
III – “comprovada a anencefalia ou quando o feto padecer de graves e incuráveis anomalias que inviabilizem a vida independente, em ambos os casos atestado por dois médicos”;
IV- “por vontade da gestante até a 12ª semana da gestação, quando o médico ou psicólogo constatar que a mulher não apresenta condições de arcar com a maternidade”.
A exemplo do Uruguai, o aborto sob essas condições previstas no ponto IV da reforma não garante plena autonomia da mulher em relação à decisão do aborto.
Diz o ponto IV: condições de arcar com a maternidade. Quais condições? Médico ou psicólogo? E se forem contra o aborto, atestarão com base na real escolha da mulher ou de acordo com suas crenças e credos?
Alguns argumentos são utilizados para justificar que a reforma se dê dessa maneira.
O primeiro e mais recorrente é que a simples legalização, qual seja garantia de que a mulher faça o aborto se assim o desejar gera uma espécie de vale-tudo do aborto que será feito desenfreadamente, e não haverá preocupação com o uso de métodos contraceptivos, desencadeando aumento de doenças sexualmente transmissíveis.
Até onde sabemos, a defesa contra os métodos contraceptivos ainda é feita por questões religiosas. Não negamos a necessidade de educação sexual e de contraceptivos para não haver necessidade de abortar. Mas, se ainda assim, o aborto for o caso, que seja feito com todas as garantias e segurança.
De outro lado, o que os dados têm revelado é que a legalização do aborto necessariamente não aumenta o número de casos, senão que em determinados países onde o aborto é legal ele se mantém no mesmo nível ou diminui.
Uso o Uruguai, mais uma vez, como exemplo, em que pese a mulher tenha de passar por um processo parecido a qual está sendo proposto no Brasil para que possa realizar o aborto. Os dados mostram que no Uruguai o índice de abortos realizados por mês é de cerca de 300 a 400, o que daria cerca de 4 mil abortos por ano, cifra muito inferior ao de antes da aprovação da Lei, que era de 33 mil por ano.
Aproveito para citar aqui ainda um exemplo e uma hipótese que me foram colocados essa semana, quando eu tratava do tema, para em seguida problematizar algumas questões.
Me foi apresentado o seguinte: “E se numa união estável a mulher não quiser o filho mas o pai sim? É necessário criar uma legislação que nesse caso só permita à essa mulher fazer o aborto se o homem também consentir em assinar documento formalizando que aceita também o aborto, não acha?
Acho a questão justa e hipótese a ser debatida, mas quero questionar, no caso de que isso aconteça, se o homem não der o consentimento e ainda assim a mulher quiser realizar o aborto? Isso a colocaria de novo em situação de ilegalidade? Talvez sim!
De outro lado, é fato de que a garantia de direitos deve vir acompanhada do cumprimento das responsabilidades em um caso como esse. Mas isso só pode se dar na medida em que a maternidade/paternidade, divisão e compartilhamento do trabalho de cuidados for uma realidade em nossa sociedade, de maneira igualitária, ou seja, tanto para as mulheres quanto para os homens.
É necessário, ainda em cima dessa questão colocada, um questionamento acerca do por que de praticamente toda a legislação e os programas criados irem sempre no sentido de reforçar e naturalizar o papel das mulheres na família e seu papel na reprodução e no trabalho de cuidados, reduzindo-nos ao papel biológico que nos é imposto, e criminalizando somente um dos lados da relação: nós mulheres.
Para que a decisão futuramente seja compartilhada, é necessário que a responsabilidade também o seja, e daí poderemos falar em igualdade de gênero. Mas, enquanto ter filhos for somente responsabilidade e “dom” das mulheres, a decisão sobre seu/ nosso corpo e se pode(mos) ou não levar à frente uma gravidez deve ser garantida à elas/nós mulheres e, com isso, nossa autonomia sobre nossos corpos.
Patricia Rodrigues é socióloga, militante da Marcha Mundial das Mulheres e Conselheira Municipal de Juventude de São Paulo.
Acredito que falta algumas referências para dar maior substância ao texto. Sempre que se recorre a estatísticas precisamos ficar atento às fonte e como elas foram realizadas.Explique-me, por exemplo, quais as causas de depois de se ter legalizado o aborto o número caia de 33 mil para 4 mil por ano?
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