domingo, 27 de setembro de 2015

Aborto, saúde, sexualidade, raça, educação e política: mulheres debatem estratégias de luta em Ação na Fronteira

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Após um primeiro dia de debates e intercâmbios entre mulheres do Brasil, Argentina e Uruguai sobre legalização e despenalização do aborto e estratégias de enfrentamento à violência, a quarta ação internacional da MMM seguiu com atividades de formação e intercâmbio, em Santana do Livramento (RS), na fronteira com Rivera/Uruguai.
Neste dia 27 de setembro, segundo dia da Primavera pelo Direito ao Corpo e a Vida das Mulheres, as 500 mulheres participantes se dividiram em oficinas temáticas para aprofundar o intercâmbio de práticas de resistências e alternativas em defesa da autonomia sobre nossos corpos. Todas as metodologias, temáticas e dinâmicas das oficinas foi construída coletivamente pelas militantes da Marcha Mundial das Mulheres do Rio Grande do Sul, envolvendo a participação das mulheres do Paraná, Santa Catarina, Argentina e Uruguai.
Enfrentar a mercantilização e a medicalização dos corpos, resgatar os saberes populares para promover a saúde das mulheres
As mulheres retomaram a crítica à mercantilização do corpos, que se expressa na palavra de ordem: “Somos mulheres e não mercadorias!”. A combinação do mercado com o machismo e o racismo segue impondo padrões de beleza e comportamento, lucrando com a criação de novas necessidades. As mulheres são constantemente julgadas e consideradas inadequadas, e ao mesmo tempo são oferecidas pílulas, dietas, hormônios e produtos para regular os nossos corpos, mas também os nossos comportamentos. A indústria farmacêutica e o poder médio interferem na saúde das mulheres, impondo a medicalização excessiva e oferecendo muitas opções de medicamentos que aliviam os sintomas sentidos, mas sem se preocupar com entender quais as causas das dores e ansiedades, ou seja, sem se preocupar com a promoção da saúde. A indústria da beleza também está diretamente ligada a estes processos, pois impõe padrões que chegam à multiplicação de intervenções cirúrgicas para que os corpos se adequem ao padrão estabelecido.
Tudo isso afasta as mulheres do conhecimento sobre seu próprio corpo, assim como de métodos não medicamentosos para cuidar da saúde, da contracepção e de ciclos hormonais naturais como a menstruação e a menopausa. As participantes trocaram conhecimentos sobre seus corpos e sua saúde e também receitas alternativas à indústria farmacêutica.  Também consideraram necessária a maior inserção das mulheres nos movimentos de saúde para reivindicar uma nova lógica e abertura para outros saberes.
Por autonomia sobre os nossos corpos 
A legalização e despenalização do aborto é uma pauta central nesta Ação. As participantes construíram espaços para a discussão de estratégias para avançar na luta pela autonomia, e também espaços de acolhimento e troca de experiências sobre a clandestinidade, que atinge números altíssimos de mulheres em países onde o aborto é crime.
As mulheres do Uruguai, pais que despenalizou parcialmente o aborto em 2012, relataram sobre a necessidade de mais avanços na legislação para que nenhuma mulher seja penalizada por abortar, e diferenciaram as realidades entre interior e capital no pais. As brasileiras e argentinas trouxeram suas realidades distintas enquanto países que possuem, em comum, a criminalização do aborto e, por conseguinte, de mulheres.
Na clandestinidade, a solidariedade das mulheres salva vidas. A experiência das Socorristas en Red, da Argentina, inspirou a todas as participantes, que refletiram sobre a necessidade de disputar o sentido da palabra e da experiência do aborto. Apontaram a necessidade de divulgar os relatos sobre aborto como relatos de vida e de autonomia, ainda que na clandestinidade. No Brasil, uma ferramenta que apoia essa estratégia é o blog Somos Todas Clandestinas.
A formação sobre a realidade do aborto é uma estratégia fundamental entre as mulheres, para enfrentar os dogmas e mitos em torno desta prática. “Es una tortura para la mujer practicarse un aborto y vivir esto con culpa. Las mujeres vamos a seguir abortando. Nuestra lucha es para no seguir muriendo. Vamos a morir menos si estamos organizadas”.
Os debates pautaram a necessidade de trabalhar com o tema do aborto não apenas como uma questão de saúde publica, mas também de autonomia. Conversaram sobre as raízes sistêmicas da maternidade compulsória e do papel reprodutivo que, às mulheres, é atribuído desde a infância. As mulheres afirmaram que, diante da ofensiva conservadora e machista, é necessário dar visibilidade à luta pela legalização do aborto, descriminalizar também social e culturalmente o conceito do aborto, pautar o assunto em cada vez mais espaços e com os mais diversos segmentos da sociedade. Relembraram o dia 28 de setembro, Dia Latinoamericano e Caribenho pela Descriminalização e Legalização do Aborto, como um dia de lutas a ser convocado e fortalecido todos os anos, até que todas sejamos livres, a partir da atuação em rede, da auto organização e da solidariedade.
Políticas públicas para mulheres
Nas oficinas foi debatida a importância das politicas públicas para as mulheres, para a promoção de autonomia, o enfrentamento à violência, à feminização da pobreza e às desigualdades sociais e de gênero, com especial destaque para a necessidade de mais politicas estatais de geração de renda.
Também consideraram a necessidade de políticas com orçamentos específicos para mulheres em uma perspectiva coletiva não apenas brasileira, mas que englobe os vários países da América do Sul. As participantes se posicionaram veementemente contra o fim da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM) e consideram esta possibilidade um retrocesso na luta pela igualdade.
Por uma sexualidade livre!
A discussão sobre lesbianidade, bissexualidade e da identidade de gênero, trouxe a questão da autonomia dos corpos das mulheres como central, por entender que nossas sexualidades são discriminadas e violentadas a partir da manutenção da heterossexualidade compulsória como forma de controlar nossos corpos e desejos.
O fundamentalismo e o conservadorismo, presentes em peso na nossa política atual, são ameaças à laicidade do Estado. Foi pontuado o rechaço das militantes da Marcha Mundial das Mulheres ao Estatuto da Família e aos projetos reacionários da bancada moralista.
Enfrentamento ao racismo e luta das mulheres negras
As mulheres presentes transformaram a oficina em um espaço de fortalecimento coletivo das mulheres negras, pautando a necessidade de seu protagonismo nas lutas feministas e antirracistas. Houve uma oficina de turbantes como cultura de resistência e, a partir desta dinâmica, elaboraram questionamentos importantes sobre as mulheres negras dentro do feminismo
O tema do trabalho doméstico e de cuidados marcou este debate, pois as mulheres negras são a maioria neste trabalho tão desvalorizado. Sobre isso, lançaram à roda o seguinte questionamento: “se são as mulheres negras que fazem a maior parte dos cuidados, quem cuida das mulheres negras?”
As mulheres reiteraram o importante papel das políticas afirmativas contra o racismo e a discriminação para fortalecer suas ações e empoderá-las coletivamente. Estas políticas são urgentes e precisam ser efetivas, garantindo mais espaço para as mulheres negras na sociedade em todos os setores que a compõe. Também por isso, as mulheres se colocaram completamente contra o fim da Secretaria de Políticas de Promoção de Igualdade Racial.
As participantes reforçaram seu compromisso com a presença na Marcha das Mulheres Negras, que acontecerá em novembro, em Brasília, apontando para a articulação que continuará após a oficina nos estados do Sul e entre as organizações presentes.
Educação para combater o conservadorismo
Muitas mulheres educadoras estiveram presentes neste debate. Elas vieram de diferentes espaços de atuação e regiões do Sul do país, e se propuseram a somar na construção de uma perspectiva feminista nas escolas a partir de formulações já iniciadas pelo conjunto da Marcha Mundial das Mulheres. As participantes debateram a resistência dos setores conservadores à inclusão de políticas de educação não-sexista nos Planos Nacional e Municipais de Educação (PNE e PMEs), rechaçaram o uso do termo “ideologia de gênero”, difundido por estes setores de forma negativa, e retomaram o compromisso de construir uma educação não-sexista mesmo sem o respaldo dos planos.
As mulheres denunciaram os efeitos nefastos da atual política de ajuste e a precarização da educação pública, que não colocam a educação como prioridade real. No âmbito das universidades, também discutiram os casos de violência e abuso, mais escancarados recentemente, e afirmaram que são urgentes e necessárias políticas de combate à violência nos ambientes universitários. Dentre estas políticas, elencaram o treinamento especializado, a criação de centros para atendimento e acolhimento dentro dos campi e a inclusão da discussão sobre gênero nos currículos escolares como um todo.
O debate não acabou aqui
Todos os grupos de oficinas finalizaram suas falas reiterando a necessidade de criar e fortalecer mais espaços de formação feminista, especialmente em espaços onde o feminismo atualmente possui menos acesso. Assim, assumiram o compromisso de multiplicar todas as resistências, práticas e formulações feministas deste encontro regional em ações locais de ampliação do debate. Paralelo a isso, também lembraram a necessidade de firmar ainda mais nossas alianças e parcerias com movimentos sociais mistos que, assim como nos, lutam por um mundo mais igual e livre.
Todas estas discussões foram levadas para a plenária final, que encaminhou a elaboração de um documento final desta Ação Internacional da Marcha Mundial das Mulheres.
As participantes realizaram em seguida uma ocupação feminista do Parque Internacional, com as músicas da batucada feminista que denunciavam o machismo e a política conservadora no estado do Rio Grande do Sul, assim como afirmavam o feminismo, o combate ao racismo e a autonomia das mulheres sobre seus corpos e sexualidade. As mulheres negras realizaram uma oficina de turbante no parque, dando visibilidade a luta anti-racista e feminista.
Na ocupação feminista do Parque, houve o lançamento do livro “Código Rosa”, de Dahiana Belfiori, que apresenta 17 relatos ficcionais de experiências de aborto acompanhadas pelas Socorristas en Red. As socorristas são difusoras de informações sobre o uso seguro do Misoprostol, encontram as mulheres cara a cara em praça pública, em um ação política, solidária e cotidiana de construção de autonomia.

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