* por Naiara Malavolta Saupe
Havia aquela sensação de embrulho no estômago, como se algo estivesse preso, agitado, querendo subir e pular boca afora. O coração acelerado e o sangue pulsando forte pelas veias parecia ter pressa de chegar a algum lugar.
Poucas coisas lhe causavam isso, a maioria em situações de enorme tensão, pura excitação ou de muito constrangimento, mas nada como nesta noite. Nada era comparável à sensação que vivia nesta noite.
A agonia fazia com que se lembrasse do dia em que chegou a Bagé, para assumir o cargo no concurso do TRT. Muito constrangimento foi o que sentiu à época.
O ano era 1991, acabara de fazer 24 anos. Desde os 18 estavam juntas, moravam juntas, dormiam juntas e toda a família sabia, os amigos sabiam, não escondiam mais de ninguém, afinal já fazia quase seis anos.
Mas aquela era uma situação nova, um emprego novo, uma cidade nova. Acabara de passar no concurso, não conhecia ninguém, chegando no interior e com muita expectativa para o futuro. Ao entrar na Junta foi recebida pela Diretora, Isolda, e apresentada para os colegas. Todas pessoas gentis e cheias de curiosidade. Uma chuva de perguntas caía sobre ela e não demorou para que ouvisse:
- Solteira, casada ou tico-tico no fubá? - questionou Adalberto.
Pega de surpresa, num ato de autodefesa, respondeu, instintivamente, quase sem pensar:
- Casad…
Antes que acabasse de pronunciar a palavra, já estava arrependida e xingando-se mentalmente: “idiota, o que é que eu fui fazer?”!
A coisa dentro do estômago ficava mais agitada, subia pelo esôfago, alojando-se na garganta. O sangue corria forte e parecia instantaneamente drenado todo para as bochechas, quando a segunda pergunta foi arremessada contra ela por uma colega de simpatia rechonchuda:
- Já? Tão cedo! Qual o nome DELE?
ELE (idiota!). Qual o nome DELE, pensava? O que é que eu vou dizer?
- Marcelo, o nome dele é Marcelo! - respondeu com as têmporas latejantes e com muito, muito constrangimento.
Ria mentalmente ao lembrar da cena e de toda a situação que dela derivou: culpa, medo, negação, 16 meses de mentiras cada vez mais elaboradas todas as vezes que falava ao telefone com a Mary e a chamava pelo nome de Marcelo. Adoeci por conta daquilo, pensou com alguma melancolia. Enquanto isso a Mary se divertia com a situação e dizia para esquecer, porque foi necessário!
Mas ela adoecera e só se deu conta disso muitos anos depois, quando já elaborava mais sobre estes assuntos.
Existiram, depois desta, inúmeras outras situações em que “a coisa” cresceu no estômago, geralmente nas primeiras vezes. Sim, primeiras vezes, porque em 30 anos de relacionamento lésbico existiram muitas primeiras vezes: a primeira vez que foram apresentadas às dezenas de parentes e suas expressões de curiosidade, estranheza ou surpresa; a primeira festa que foram juntas no trabalho de uma ou de outra; o primeiro beijo em público; o primeiro passeio de mãos dadas na rua; as compras que fizeram juntas e os vendedores perguntando se eram irmãs, ou amigas e ouvindo espantados: “Não, ela é minha companheira”; a primeira vez que, em um hotel, exigiram cama de casal, ao invés de simplesmente juntar as camas de solteiro do quarto em que foram alojadas.
Nossa! Foram muitas primeiras vezes! E em todas aquela sensação de embrulho no estômago estivera presente. E sempre, nestes casos, causada por enorme tensão.
Não deixava de ser irônico, hoje estavam vivendo uma outra primeira vez! Só que desta vez com sabor de reprise. “Estamos casando pela terceira vez”, concluiu mentalmente, entre surpresa e excitação!
E era verdade! A primeira vez que casaram foi em 1985, quando resolveram morar juntas. Ela com 18 e Mary com 33 anos. Compraram móveis devagar, na medida em que juntavam dinheiro. Mudaram-se quase que simplesmente com as roupas do corpo, porque o importante era que estivessem juntas. Convidaram alguns poucos amigos para aquele primeiro casamento, quando inauguraram a nova moradia.
A segunda vez que se casaram foi 19 anos depois, em 2004, quando, amparadas por uma decisão do TJ-RS, assinaram a Declaração de União Estável. Fizeram sozinhas, meio na correria, num impulso de não deixar a oportunidade passar. Ela estava com 37 e Mary com 52 anos.
Esta era a terceira vez que casariam, no dia exato em que completavam 30 anos de união. Para esta noite tudo foi planejado com meses de antecedência: o salão estava cheio, fizeram os proclamas e contrataram a juíza, fotógrafa, comidas, garçons. Quatro casais de padrinhos, bolo de casamento, champanhe e bem-casados para o final …. e aquela sensação de embrulho no estômago, subindo pelo esôfago e trancando na garganta, igual a todas as outras vezes. Mas não, nada era comparável a sensação daquela noite!
Despertou do devaneio quando em meio à música a juíza perguntou:
- Ana Naiara, aceita Mary Saupe como sua legítima esposa?
- Sim, aceito!
E a “coisa” saltou para fora da garganta junto com o SIM, desobstruindo o estômago e aliviando o coração. Era um momento raro, de pura excitação!
* Naiara Malavolta Saupe é militante lésbica feminista da Marcha Mundial das Mulheres RS
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