domingo, 31 de maio de 2020

Jornada de Formação Feminista da MMM RS = Algumas reflexões sobre o aborto desde uma perspectiva ecofeminista


Olá a todas as marchantes,
Estamos retomando a tradução dos textos para o mês de maio, dentro da Jornada de Formação Feminista da Marcha Mundial das Mulheres RS para a 5º Ação Internacional.
Cabe lembrar que este texto faz parte do Caderno 4 da jornada, onde estamos publicando uma série de artigos sobre ecofeminismos, feminismo e ecologia, feminismo e meio ambiente e etc.  

Os encontros de formação estavam organizados em formato presencial, mas frente ao Covid-19, estamos reorganizando as agendas e encontrando a melhor maneira de estarmos conectadas – virtualmente, e manter forte nossa rede feminista durante este período de distanciamento social.
Todas as traduções dos textos são parte da revista Madreselvas - Tecendo Ecofeminismos (disponível em <https://amigosdelatierra.org.ar/biblioteca/>) 

Boa leitura!

Algumas reflexões sobre o aborto desde uma perspectiva ecofeminista

                                                   Por Silvia Papuccio de Vidal  e  María Elena Ramognini, 
                                                  Rede de mulheres defensoras do ambiente e do bem viver 


A defesa da vida é um eixo central do pensamento e ação ecofeminista.  Mas não de qualquer vida, mas de uma que mereça a alegria de ser vivida. Uma vida que pode se desdobrar em contextos amorosos, em laços e vínculos saudáveis, sem violência, sem desigualdades, sem opressões de nenhum tipo. Vidas desejadas e planejadas, levando em conta os limites físicos impostos pela natureza e pelas sociedades capitalistas atuais. Sabendo que a base dessas sociedades é constituída por um crescimento econômico ilimitado e a privatização-mercantilização da vida, palpável nas crises dos cuidados e nas crises ecológicas que experimentamos a nível global. Essa crise civilizatória que é o resultado da conjunção dos três vieses dos logos ocidentais - androcentrismo, etnocentrismo e antropocentrismo - que foram impostos como uma matriz de pensamento único que rege nossos destinos humanos e os de todos os seres vivos que nos acompanham e em nossa casa, o planeta Terra.

As mulheres sempre foram portadoras de conhecimentos e práticas para a conservação e reprodução da vida. Também para a sua interrupção. As mesmas tem incluído o controle de natalidade e o acompanhamento dos partos usando técnicas não violentas, aproveitando o conhecimento da diversidade biológica e cultural de seu ambiente.

Essas práticas e conhecimentos foram invisibilizados e  corroídos intensionalmente pelas religiões, os governos e capital transnacional em diferentes momentos de nossa experiência civilizatoria, e muitas mulheres pagaram e seguem pagando com suas vidas por isso: desde a caça às bruxas desencadeada desde o final do Idade Média, no início da Modernidade, até os femicídios e femigenocídios que experimentamos no presente.

No atual debate em torno da legalização do aborto na Argentina, podemos observar a perversa apropriação que opera com o termo "Vida". Esse "seqüestro" é realizado a partir de setores que diária e sistematicamente se encarregam de oprimir, violar, destruir e patentear a vida. A moral patriarcal e capitalista assume a palavra vida para continuar sua lógica de violência e destruição sistemática do que alega salvaguardar. O corpo das mulheres emerge no centro da cena política como território conquistado, como emblema e sinal de todas as opressões, como espaço por excelência para a construção de hierarquia e dominação. O aborto pensado a partir da lógica da dominação deve ser penalizado, porque isso mantém o controle sobre a vida e o corpo das mulheres. Não há criminalização como um instrumento de salvaguarda, se não o de clandestinização e como mecanismo de tortura.

A legalização do aborto envolve a urgência de colocar no centro da cena política as condições de vida nas quais as mulheres participam da sexualidade e da reprodução em uma sociedade altamente desigual, extremamente sexista, racista e classista (no caso do texto original, se refere à Argentina, mas se aplica a nossa realidade, que neste caso é a mesma).

Para as mulheres, o aborto implica uma mutilação. Isso ocorre porque a sexualidade feminina é inseparável da fertilidade. A dissociação é outra das armadilhas sinistras que a modernidade teceu sobre nossos corpos e subjetividades femininas. Fomos levadas a crer que a contracepção hormonal era a possibilidade de viver uma sexualidade livre, planejada e nossos corpos se viram inundados por hormônios cujos efeitos cancerígenos e mutagênicos não demoraram a nos conscientizar dos riscos trazem a medicalização. A introdução de contraceptivos hormonais ou mecânicos, sempre invasivos e antinaturais, não apenas não mudou os padrões sexistas ou a violência contra as mulheres, mas, pelo contrário, os aprofundou. Como a contracepção medicalizada, o aborto não pode ser entendido como um desejo para as mulheres. É uma necessidade que resulta da absoluta perda de poder sobre nossas sexualidades, que implicou a entrada na modernidade. Acreditamos que a legalização do aborto não pode surgir apenas como um direito, mas uma exigência de vida, assim como são exigências de vida repensar a contracepção e o nascimento. E, neste ponto, é importante destacar que atualmente, no momento exato em que há um vislumbre de esperança em relação à legalização do aborto na Argentina, um projeto de lei entra no Congresso para penalizar a atenção/cuidados domiciliares ao parto pelas mãos de parteiras certificadas. Feito que nos ilustra como opera o biopoder: a vida não pode escapar de seu controle. O capitalismo patriarcal é construído e se sustenta a partir de permanentes cercamentos sobre a vida. As mulheres e natureza são os campos de exploração-extermínio por excelência da biopolítica.

Estamos assistindo na Argentina emergir a repetição de uma dupla moral e um divórcio entre discursos e práticas. Aqueles que se opõem a legalização do aborto por motivos de saúde, os mesmos que dizem defender "ambas as vidas" são aqueles que, diante da penalidade do congresso, ameaçam realizar abortos sem anestesia ou "embrulhar em plástico" - um eufemismo para assassinar - mulheres que abortarem, para alertá-los de que deveriam ter se lembrado de cuidar de si mesmos, como se os homens não tivessem responsabilidade por isso. São os e as mesmas que se queixam quando os governos progressistas concedem subsídios a mães gestantes, chefes de família em situação de pobreza ou abono de filhos, argumentando que mulheres pobres "engravidam para não trabalhar e viver no estado". São as mesmas e os mesmos (indivíduos, governos e organizações da sociedade civil) que sustentam que essas crianças por vir não têm futuro e serão, confundindo pobreza com delinquência, criminosos em potencial. Os mesmos e as mesmas que de tempos em tempos, desenterram as ideias de Malthus, nos assustando com o fantasma da fome, o mito do crescimento excessivo da população e a falta de alimento para a subsistência humana. Os mesmos que não questionam a divisão sexual e internacional do trabalho, o modelo produtivo extrativista, poluidor, destrutivo e excludente, como também não se preocupam com a crescente mercantilização e precarização da vida como um todo.

Essa hipocrisia também surge como reveladora sintomática do silenciamento total dos abortos causados ​​por agrotóxicos, acumulados em nossos corpos em quantidades excessivas e desconhecidas, devido à expansão da agricultura industrial no país, principalmente nos últimos cinquenta anos. Produtos altamente tóxicos que também causam múltiplas malformações e mortes por câncer e que falam claramente de uma emergência sanitária no campo e na cidade não reconhecida pelos governos. Tampouco não há menção a abortos e a "epidemia" de crianças nascidas com malformações neuronais devido a déficits nutricionais, especialmente o ácido fólico, que respondem pelo fracasso das políticas públicas capitalistas de combater a fome e a pobreza em um país que poderia fornecer alimentos a um quarto do planeta e continua apostando tolamente no livre comércio e na imposição de um modelo agroalimentar global em detrimento de suas economias regionais, natureza, saúde de sua população e soberania alimentar. Em outro âmbito, mas sempre ligada à defesa parcial da vida, surpreende que considerem “seres” os embriões no útero de uma mulher, e seus portadores sejam sentenciados quando decidem abortar, enquanto o destino dos embriões congelados descartados não é questionado (ou quem sabe para o que são utilizados) durante tratamentos de fertilização assistida, mediados e apoiados pela ciência, biotecnologia e empresas altamente capitalizadas de reprodução da vida humana.

A biopolítica exercida pelo Estado e pelas empresas transnacionais controla e disciplina o corpo das mulheres, mas também de homens, cortando seus poderes vitais. Força as pessoas e a natureza a produzir o que não é desejável nem sustentável. Nos envenena com suas medicamentos (ou drogas) e toxinas, nos empobrece economicamente em um processo furtivo e constante pelo qual nos coloniza culturalmente, nos fazendo perder o controle sobre nossos corpos e territórios, alimentos e outros ativos naturais comuns, alienando também a possibilidade de estabelecer novos laços entre humanos e natureza, com base em critérios de coexistência e interdependência vital.

Diante dessa situação e de uma posição singular e crítica, o ecofeminismo resgata os saberes silenciados das mulheres e o cuidado consciente e responsável da vida como principal antídoto contra a violência e como ética e proposta orientada para a sustentabilidade. Defende também, a autonomia das mulheres sobre seus corpos, em um contexto generalizado em que as desigualdades sexuais são as principais causas da não equidade e violência. "Nem uma a menos", "Nem terra nem mulher são territórios de conquista", "Nós mulheres parimos, nós decidimos" e "a vida e nosso corpo não são uma mercadoria", são alguns dos slogans que os feminismos tradicionais e de feminismos-outros (ecológicos, comunitários, descoloniais) vêm ganhando consciência e espaço em Nossa América como uma expressão evidente da tenacidade e da luta do Movimento de Mulheres, da maturidade política da população e da justiça de gênero.

Decidir sobre nossos corpos, sexualidades, territórios e vidas não pode ser questionável. Tampouco é negociável a defesa da natureza da qual somos parte. Que seja lei!


Nota da tradutora:
Este artigo foi publicado no Caderno Madreselvas tejiendo ecofeminismos, no início de 2019. Por isto, de lá pra cá, pode ter havido movimento das peças deste xadrez complexo que é a ilegalidade do aborto na Argentina (e no Brasil). Por isto trouxemos abaixo alguns links com notícias sobre o tema do aborto nos últimos meses.

Em período de Covid-19 soubemos que os serviços para o aborto legal estavam priorizando o atendimento para as vítimas da pandemia, o que não é desculpa para não atender as mulheres em situação de aborto legal, por exemplo. Mas ocorreu um certo “descaso”, fazendo as mulheres irem ao serviço e voltarem pra casa sem atendimento, ou serviços fecharam temporariamente, ou atendiam apenas uma vez por semana. Fazendo com que as mulheres ficassem mais expostas ao vírus e vulneráveis também em sua situação particular.


Senadores defendem que Congresso, e não o STF, decida sobre o aborto

Ação sobre aborto para gestantes com zika é rejeitada por maioria no STF

STF, aborto e a negação dos direitos das mulheres e crianças atingidas por zika

El parto em tiempos de Covid-19, por Esther Vivas

“2020 será o ano do aborto legal, é irreversível que se torne lei”, diz María Florencia Alcaraz

Sobre o bloqueio dos sites pelo direito de escolha Women on Waves e Women on Web

Informação sobre aborto e contracepção? Há apps para isso  - https://azmina.com.br/reportagens/informacao-sobre-aborto-e-contracepcao-ha-apps-para-isso/

Women help Women - https://womenhelp.org/

Socorristas en Red -feministas que abortamos- https://socorristasenred.org/

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