Olá a todas as marchantes,
Estamos retomando a tradução dos textos para o mês de maio, dentro da Jornada de Formação Feminista da Marcha Mundial das Mulheres RS para a 5º Ação Internacional.
Cabe lembrar que este texto faz parte do Caderno 4 da jornada, onde estamos publicando uma série de artigos sobre ecofeminismos, feminismo e ecologia, feminismo e meio ambiente e etc.
Os encontros de formação estavam organizados em formato presencial, mas frente ao Covid-19, estamos reorganizando as agendas e encontrando a melhor maneira de estarmos conectadas – virtualmente, e manter forte nossa rede feminista durante este período de distanciamento social.
Todas as traduções dos textos são parte da revista Madreselvas - Tecendo Ecofeminismos (disponível em <https://amigosdelatierra.org.ar/biblioteca/>) Cabe lembrar que este texto faz parte do Caderno 4 da jornada, onde estamos publicando uma série de artigos sobre ecofeminismos, feminismo e ecologia, feminismo e meio ambiente e etc.
Os encontros de formação estavam organizados em formato presencial, mas frente ao Covid-19, estamos reorganizando as agendas e encontrando a melhor maneira de estarmos conectadas – virtualmente, e manter forte nossa rede feminista durante este período de distanciamento social.
Boa leitura!
Algumas reflexões sobre o aborto desde uma perspectiva ecofeminista
Por
Silvia Papuccio de Vidal e María Elena Ramognini,
Rede de mulheres
defensoras do ambiente e do bem viver
A defesa da vida é um eixo
central do pensamento e ação ecofeminista. Mas não de qualquer vida, mas de uma que
mereça a alegria de ser vivida. Uma vida que pode se desdobrar em contextos
amorosos, em laços e vínculos saudáveis, sem violência, sem desigualdades, sem
opressões de nenhum tipo. Vidas desejadas e planejadas, levando em conta os
limites físicos impostos pela natureza e pelas sociedades capitalistas atuais.
Sabendo que a base dessas sociedades é constituída por um crescimento econômico
ilimitado e a privatização-mercantilização da vida, palpável nas crises dos
cuidados e nas crises ecológicas que experimentamos a nível global. Essa crise
civilizatória que é o resultado da conjunção dos três vieses dos logos
ocidentais - androcentrismo, etnocentrismo e antropocentrismo - que foram
impostos como uma matriz de pensamento único que rege nossos destinos humanos e
os de todos os seres vivos que nos acompanham e em nossa casa, o planeta Terra.
As mulheres sempre foram
portadoras de conhecimentos e práticas para a conservação e reprodução da vida.
Também para a sua interrupção. As mesmas tem incluído o controle de natalidade
e o acompanhamento dos partos usando técnicas não violentas, aproveitando o
conhecimento da diversidade biológica e cultural de seu ambiente.
Essas
práticas e conhecimentos foram invisibilizados e corroídos intensionalmente pelas religiões, os
governos e capital transnacional em diferentes momentos de nossa experiência
civilizatoria, e muitas mulheres pagaram e seguem pagando com suas vidas por
isso: desde a caça às bruxas desencadeada desde o final do Idade Média, no
início da Modernidade, até os femicídios e femigenocídios que experimentamos no
presente.
No atual debate
em torno da legalização do aborto na Argentina, podemos observar a perversa
apropriação que opera com o termo "Vida". Esse "seqüestro"
é realizado a partir de setores que diária e sistematicamente se encarregam de
oprimir, violar, destruir e patentear a vida. A moral patriarcal e capitalista
assume a palavra vida para continuar sua lógica de violência e destruição
sistemática do que alega salvaguardar. O corpo das mulheres emerge no centro da
cena política como território conquistado, como emblema e sinal de todas as
opressões, como espaço por excelência para a construção de hierarquia e
dominação. O aborto pensado a partir da lógica da dominação deve ser
penalizado, porque isso mantém o controle sobre a vida e o corpo das mulheres. Não
há criminalização como um instrumento de salvaguarda, se não o de clandestinização
e como mecanismo de tortura.
A
legalização do aborto envolve a urgência de colocar no centro da cena política
as condições de vida nas quais as mulheres participam da sexualidade e da reprodução
em uma sociedade altamente desigual, extremamente sexista, racista e classista (no
caso do texto original, se refere à Argentina, mas se aplica a nossa realidade,
que neste caso é a mesma).
Para as mulheres, o
aborto implica uma mutilação. Isso ocorre porque a sexualidade feminina é
inseparável da fertilidade. A dissociação é outra das armadilhas sinistras que
a modernidade teceu sobre nossos corpos e subjetividades femininas. Fomos levadas
a crer que a contracepção hormonal era a possibilidade de viver uma sexualidade
livre, planejada e nossos corpos se viram inundados por hormônios cujos efeitos
cancerígenos e mutagênicos não demoraram a nos conscientizar dos riscos trazem
a medicalização. A introdução de contraceptivos hormonais ou mecânicos, sempre
invasivos e antinaturais, não apenas não mudou os padrões sexistas ou a
violência contra as mulheres, mas, pelo contrário, os aprofundou. Como a
contracepção medicalizada, o aborto não pode ser entendido como um desejo para
as mulheres. É uma necessidade que resulta da absoluta perda de poder sobre
nossas sexualidades, que implicou a entrada na modernidade. Acreditamos que a
legalização do aborto não pode surgir apenas como um direito, mas uma exigência
de vida, assim como são exigências de vida repensar a contracepção e o
nascimento. E, neste ponto, é importante destacar que atualmente, no momento
exato em que há um vislumbre de esperança em relação à legalização do aborto na
Argentina, um projeto de lei entra no Congresso para penalizar a atenção/cuidados
domiciliares ao parto pelas mãos de parteiras certificadas. Feito que nos
ilustra como opera o biopoder: a vida não pode escapar de seu controle. O
capitalismo patriarcal é construído e se sustenta a partir de permanentes cercamentos
sobre a vida. As mulheres e natureza são os campos de exploração-extermínio por
excelência da biopolítica.
Estamos assistindo na
Argentina emergir a repetição de uma dupla moral e um divórcio entre discursos
e práticas. Aqueles que se opõem a legalização do aborto por motivos de saúde, os
mesmos que dizem defender "ambas as vidas" são aqueles que, diante da
penalidade do congresso, ameaçam realizar abortos sem anestesia ou
"embrulhar em plástico" - um eufemismo para assassinar - mulheres que
abortarem, para alertá-los de que deveriam ter se lembrado de cuidar de si
mesmos, como se os homens não tivessem responsabilidade por isso. São os e as
mesmas que se queixam quando os governos progressistas concedem subsídios a
mães gestantes, chefes de família em situação de pobreza ou abono de filhos,
argumentando que mulheres pobres "engravidam para não trabalhar e viver no
estado". São as mesmas e os mesmos (indivíduos, governos e organizações da
sociedade civil) que sustentam que essas crianças por vir não têm futuro e
serão, confundindo pobreza com delinquência, criminosos em potencial. Os mesmos
e as mesmas que de tempos em tempos, desenterram as ideias de Malthus, nos
assustando com o fantasma da fome, o mito do crescimento excessivo da população
e a falta de alimento para a subsistência humana. Os mesmos que não questionam
a divisão sexual e internacional do trabalho, o modelo produtivo extrativista,
poluidor, destrutivo e excludente, como também não se preocupam com a crescente
mercantilização e precarização da vida como um todo.
Essa hipocrisia também surge
como reveladora sintomática do silenciamento total dos abortos causados por
agrotóxicos, acumulados em nossos corpos em quantidades excessivas e
desconhecidas, devido à expansão da agricultura industrial no país,
principalmente nos últimos cinquenta anos. Produtos altamente tóxicos que
também causam múltiplas malformações e mortes por câncer e que falam claramente
de uma emergência sanitária no campo e na cidade não reconhecida pelos
governos. Tampouco não há menção a abortos e a "epidemia" de crianças
nascidas com malformações neuronais devido a déficits nutricionais,
especialmente o ácido fólico, que respondem pelo fracasso das políticas
públicas capitalistas de combater a fome e a pobreza em um país que poderia
fornecer alimentos a um quarto do planeta e continua apostando tolamente no
livre comércio e na imposição de um modelo agroalimentar global em detrimento
de suas economias regionais, natureza, saúde de sua população e soberania
alimentar. Em outro âmbito, mas sempre ligada à defesa parcial da vida, surpreende
que considerem “seres” os embriões no útero de uma mulher, e seus portadores
sejam sentenciados quando decidem abortar, enquanto o destino dos embriões
congelados descartados não é questionado (ou quem sabe para o que são
utilizados) durante tratamentos de fertilização assistida, mediados e apoiados
pela ciência, biotecnologia e empresas altamente capitalizadas de reprodução da
vida humana.
A biopolítica exercida pelo
Estado e pelas empresas transnacionais controla e disciplina o corpo das
mulheres, mas também de homens, cortando seus poderes vitais. Força as pessoas
e a natureza a produzir o que não é desejável nem sustentável. Nos envenena com
suas medicamentos (ou drogas) e toxinas, nos empobrece economicamente em um
processo furtivo e constante pelo qual nos coloniza culturalmente, nos fazendo
perder o controle sobre nossos corpos e territórios, alimentos e outros ativos
naturais comuns, alienando também a possibilidade de estabelecer novos laços
entre humanos e natureza, com base em critérios de coexistência e
interdependência vital.
Diante dessa situação e de
uma posição singular e crítica, o ecofeminismo resgata os saberes silenciados
das mulheres e o cuidado consciente e responsável da vida como principal
antídoto contra a violência e como ética e proposta orientada para a
sustentabilidade. Defende também, a autonomia das mulheres sobre seus corpos,
em um contexto generalizado em que as desigualdades sexuais são as principais
causas da não equidade e violência. "Nem uma a menos", "Nem terra
nem mulher são territórios de conquista", "Nós mulheres parimos, nós decidimos"
e "a vida e nosso corpo não são uma mercadoria", são alguns dos
slogans que os feminismos tradicionais e de feminismos-outros (ecológicos,
comunitários, descoloniais) vêm ganhando consciência e espaço em Nossa América
como uma expressão evidente da tenacidade e da luta do Movimento de Mulheres,
da maturidade política da população e da justiça de gênero.
Decidir sobre nossos corpos,
sexualidades, territórios e vidas não pode ser questionável. Tampouco é negociável
a defesa da natureza da qual somos parte. Que seja lei!
Nota
da tradutora:
Este artigo foi publicado no
Caderno Madreselvas tejiendo ecofeminismos, no início de 2019. Por isto, de lá
pra cá, pode ter havido movimento das peças deste xadrez complexo que é a
ilegalidade do aborto na Argentina (e no Brasil). Por isto trouxemos abaixo
alguns links com notícias sobre o tema do aborto nos últimos meses.
Em período de Covid-19
soubemos que os serviços para o aborto legal estavam priorizando o atendimento
para as vítimas da pandemia, o que não é desculpa para não atender as mulheres
em situação de aborto legal, por exemplo. Mas ocorreu um certo “descaso”,
fazendo as mulheres irem ao serviço e voltarem pra casa sem atendimento, ou
serviços fecharam temporariamente, ou atendiam apenas uma vez por semana.
Fazendo com que as mulheres ficassem mais expostas ao vírus e vulneráveis
também em sua situação particular.
Senadores
defendem que Congresso, e não o STF, decida sobre o aborto
Ação
sobre aborto para gestantes com zika é rejeitada por maioria no STF
STF,
aborto e a negação dos direitos das mulheres e crianças atingidas por zika
El
parto em tiempos de Covid-19, por Esther Vivas
“2020
será o ano do aborto legal, é irreversível que se torne lei”, diz María
Florencia Alcaraz
Sobre
o bloqueio dos sites pelo direito de escolha Women on Waves e Women on Web
Informação
sobre aborto e contracepção? Há apps para isso
- https://azmina.com.br/reportagens/informacao-sobre-aborto-e-contracepcao-ha-apps-para-isso/
Women
help Women - https://womenhelp.org/
Socorristas
en Red -feministas que abortamos- https://socorristasenred.org/
Somos
todas clandesticas - https://somostodasclandestinas.milharal.org/
Dossiê: mulheres em marcha pela legalização do aborto
http://www.marchamundialdasmulheres.org.br/dossie-mulheres-em-marcha-pela-legalizacao-do-aborto/
Dossiê: mulheres em marcha pela legalização do aborto
http://www.marchamundialdasmulheres.org.br/dossie-mulheres-em-marcha-pela-legalizacao-do-aborto/
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