“Seguiremos na luta pelo esclarecimento de todos os crimes da ditadura”
Trinta e oito anos após o 11 de setembro que derrubou o governo de Salvador Allende e causou a morte do presidente chileno, sua filha, a senadora Isabel Allende fala para a Carta Maior sobre os últimos momentos com o seu pai no dia em que o general Augusto Pinochet mandou bombardear o Palácio de la Moneda. "Lembro-me de suas palavras e da decisão de ficar em La Moneda, porque esse era seu lugar, que correspondia a um presidente constitucional", diz Isabel.
Christian Palma - Correspondente da Carta Maior em Santiago do Chile - @chripalma
A biografia de Isabel Allende Bussi, filha de Salvador, o grande presidente do Chile, conta que na manhã do dia 11 de setembro de 1973, ela chegou a La Moneda poucos minutos antes das nove da manhã e permaneceu junto com sua irmã Beatriz, conversando um longo tempo com seu pai.
Desde o início, o presidente diz a elas que não renunciará como, naquela hora, os militares comandados por Pinochet estavam exigindo. Ele queria dar uma lição moral aqueles que o estavam traindo. Suas filhas queriam permanecer com ele, mas o pai pede que elas vão embora e, finalmente, as obriga a sair do palácio um pouco antes de começar o bombardeio.
“No rosto de meu pai, percebi uma mistura de surpresa e incredulidade quando me viu e uma íntima satisfação de sentir-se próximo de suas duas filhas, ainda que – devo reconhecer – nossa presença o perturbasse profundamente. Pouco depois, nos reuniu a todos os presentes no salão Toesca. Lembro-me de suas palavras e da decisão de ficar em La Moneda, porque esse era seu lugar, que correspondia a um presidente constitucional. Disse que não ia renunciar e que havia rechaçado as ofertas para abandonar o país. Pediu, em troca, que seus assessores deixassem o palácio, já que não estavam treinados para usar armas e porque o mundo precisava saber o que estava acontecendo”, contou a atual senadora socialista.
Isabel e Beatriz saíram e, entre tiros isolados, se refugiaram primeiro na entrada de um edifício e, depois, avançaram em um veículo entre controles militares que conseguiram ultrapassar por causa da gravidez de “Tati” e foram para a casa de uma colega de trabalho de Isabel, onde passaram a noite do dia 11. Ali ficaram sabendo do bombardeio do palácio, da residência presidencial de Tomás Moro e da morte do presidente Allende.
No dia 12 de setembro, depois que sua mãe Tencha Bussi de Allende, assistiu sozinha o enterro secreto do presidente Allende, no cemitério de Santa Inês, em Viña del Mar, partiu para o exílio com sua família.
38 anos após esse episódio e com a recente certeza legal de que seu pai preferiu tirar a própria vida antes de cair nas mãos dos golpistas de Estado, Isabel Allende, revela suas impressões à Carta Maior.
Este 11 de setembro tem um “sabor” especial, levando em conta que se determinou que o presidente Allende se suicidou em La Moneda e não foi morto por mãos militares?
O resultado das investigações do juiz Mario Carroza que permitiu estabelecer com critério científico o que a família e os colaboradores diretos sempre sustentaram sobre a morte de Allende fecha um ciclo para a família, mas não termina como o desejo de justiça de muitos. Neste 11 de setembro, assim como nos anos anteriores, pediremos justiça para muitos que foram detidos em La Moneda e nunca mais se soube deles.
O que significa, finalmente, a determinação da causa da morte do presidente Allende? Acabar com as especulações? Fecha-se um ciclo, sem dúvida doloroso, mas muito importante, não só para a família como para todo o país?
Sem dúvida que era um ato necessário da justiça com o Chile. Como disse a Corte Suprema era uma dívida com a história. Essa definição, mais do que terminar com as especulações, reafirma o que os testemunhos diretos indicam sobre a morte do presidente e ratifica a vontade do presidente de que só com sua morte deixaria de cumprir o mandato constitucional que lhe foi outorgado pelo povo do Chile.
O que você poderia dizer aos milhares de brasileiros que consideram Salvador Allende um herói, um exemplo de valores, de coerência. Um democrata verdadeiro, preocupado com o povo mais pobre, com os despossuídos?
A história de Salvador Allende é uma longa luta pelos direitos dos trabalhadores e dos mais despossuídos. Não somente sua morte é um exemplo, mas toda sua vida. Sua longa trajetória como parlamentar, como defensor dos direitos dos trabalhadores, já tinham o convertido em uma das principais lideranças da esquerda latino-americana. Salvador Allende também trabalhou pelo aprofundamento da democracia em nossos países.
Sua presidência está cheia de medidas em favor dos mais despossuídos.
Destaco duas: a nacionalização do cobre, que permitiu aos chilenos contar com uma riqueza de nosso solo que estava vedada a eles até então. Até hoje, muitos programas sociais são pagos com os recursos gerados pela Codelco, a empresa estatal que surgiu desta medida revolucionária do presidente. Uma segunda é garantir para cada criança chilena meio litro de leite por dia, o que implicou um grande avanço na luta contra a desnutrição. A campanha contra a fome do presidente Lula me lembrou muito desse feito de Allende.
Qual a preocupação da família Allende daqui em diante?
Nós estamos preocupados em transmitir o legado do presidente às novas gerações e, para isso, temos a Fundação Salvador Allende, que também participa na administração do museu da solidariedade. Por outro lado, seguiremos, como tem sido feito nestes anos, na luta pelo esclarecimento de todos os crimes da ditadura e por levar seus executores e autores intelectuais aos tribunais.
Tradução: Katarina Peixoto
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