terça-feira, 29 de maio de 2012

O Estupro nosso e a Justificativa de Cada Dia

por Vanessa Gil *


Não, esse texto não é sobre a Xuxa, é sobre preconceito, misoginia, sexismo. É sobre a incapacidade de discernimento de algumas pessoas. Sobre oportunismo de outras. Sobre a ignorância de todas elas.
No domingo, 20 de maio, no Fantástico, a Xuxa revelou ter sofrido abusos sexuais na infância, mais de uma vez, por um amigo do pai e por um professor. Não me interessa o que a Xuxa representa, o que a Globo representa, o que o Fantástico representa. Importa o que o abuso sexual sofrido por qualquer mulher representa para o meu feminismo, para mim. Não relativizo violência contra mulheres. Não há mais violência, menos violência, há machismo e preconceito.
O que é emblemático nesse caso são as justificativas usadas para tirar a misoginia do armário. O assunto tomou conta das redes sociais com as piadas politicamente incorretas fazendo sucesso, surgindo a afirmação de que o caso foi inventado apenas para desviar o olhar público sobre a última CPI. É tão absurdo que não merece nem argumentação. Outras publicações sugerem que ela não merece crédito poque namorou o Senna, o Pelé, ou a Marlene Matos. Como dizemos na Marcha Mundial das Mulheres: Se o corpo é da mulher, ela dá para quem quiser, inclusive para outra mulher. Mas é para quem ela quiser mesmo, e só se ela quiser. E falamos de mulheres adultas. Mulheres jovens, crianças, masculinas ou femininas, não desejam ser abusadas, são sempre as vítimas.
A Xuxa mentiu, dizem muitos, para aumentar o Ibope da Globo. Ora, a Globo tem seu gado cativo, precisa bem menos do que isso para segurar o olhar d@s telespectador@s. Não acredito que uma mulher invente um abuso sexual, um caso de pedofilia, algo tão horroroso assim, apenas para ganhar pontos no IBOPE. Há formas bem mais prazeiras e menos humilhantes de chamar muito mais a atenção, de causar polêmica.
Outro ponto curioso dessa misoginia nas redes sociais é que grande parte das pessoas que hoje compartilham fotos da Xuxa com piadas sobre seu abuso, sua sexualidade, sua conduta moral, são as mesmas que postam convites para a Marcha das Vadias, afirmando que somos todas isso, somo todas aquilo. Infelizmente a única coisa comum a todas nós é a opressão patriarcal e capitalista. Algumas de nós tem em comum a luta para mudar esse mundo machista e androcentrico. Nenhuma de nós passa pela vida sem sofrer com o preconceito.

Espero que um dia possamos dizer que não somos nem santas, nem vadias, nem putas, porque seremos todas livres e solidárias. E que nossa conduta, qualquer que seja, não sirva de justificativa para o abuso e controle dos nossos corpos. Que poderemos, de fato, apoiarmo-nos mutuamente, reconhecendo na outra mulher a opressão que pesa sobre cada uma de nós. Que possamos exercitar solidariedade com a nossa classe até o ponto em que classes não existam mais, que sejam superadas por um mundo justo e igualitário. Mas que, até lá, a condição de mulher não seja esquecida pelas diferenças econômicas e ideológicas.
Sou solidária com a Xuxa da mesma forma que sou com todas as outras mulheres. Repudio a forma como essa sociedade machista trata o abuso da Xuxa, como trata o assassinato da Eliza Samúdio, como tratou a minha colega da 7° série que foi estuprada pelo pai e por conta disso nunca mais foi à aula. Sou solidária, só isso.


*Vanessa Gil é
Cientista Social
Militante Feminista da Marcha Mundial das Mulheres RS

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