terça-feira, 15 de setembro de 2015

O atendimento ao abortamento legal e a negligência do Estado


Vanessa Gil[1] e Raquel C. Pereira Duarte[2]
Muitos são os direitos humanos das mulheres que são cotidianamente desrespeitados. Violência física, moral, patrimonial e sexual fazem parte da vida de muitas. Contudo, tão cruel quanto essa realidade, é a falta de garantia ao acesso às políticas públicas que buscam combater e minimizar os traumas gerados.
O Brasil, apesar de ter em sua Constituição Federal a afirmação de que se trata de um Estado laico, vem convivendo com uma ofensiva dos setores conservadores que buscam retrocessos justamente nos direitos sexuais e reprodutivos das mulheres. Assim, quando a autonomia das mulheres sobre o próprio corpo passa a ser cerceada por projetos de lei de cunho religioso e fundamentalista como estamos vendo nos últimos tempos, não só o conceito de Estado laico, mas também de Democracia precisa ser discutida.
Nesse sentido, por compreender que negar o direito a decidir sobre o próprio corpo, em especial, nos casos garantidos por lei, é uma grave violação dos direitos humanos das mulheres, optamos por tratar do (não) atendimento humanizado ao abortamento legal na cidade de Porto Alegre.
O que diz a legislação
Ainda hoje, a legislação sobre o direito ao aborto difere muito de um país para outro. No Brasil a interrupção voluntária da gravidez é considerada crime contra a vida, gerando pena de um a três anos de prisão para a mulher que provoque ou permita que outra pessoa lhe provoque, segundo o Art. 124 do Código Penal, em vigência desde 1940.
Até o ano de 2012, apenas em dois casos o aborto não era punido: risco de vida para a gestante (aborto necessário) e gravidez resultante de estupro, ambos tipificados no Art. 128 do Código Penal Brasileiro. A partir de 2012, após julgamento do STF[3], também se permitiu o abortamento em casos comprovados de feto anencéfalo (aborto terapêutico). Nesses casos, o governo brasileiro é obrigado a fornecer gratuitamente o abortamento pelo Sistema Único de Saúde.
 Como deveria ser o atendimento
Apesar da obrigatoriedade de total amparo médico na realização do abortamento nas hipóteses citadas, as mulheres enfrentam duras realidades nos hospitais públicos país a fora.
Para ter acesso a interrupção da gravidez em caso de estupro, basta que a mulher declare que a gravidez resultou de ato sexual não consensual. Não é preciso a apresentação do boletim de ocorrência, tampouco qualquer tipo de exame.
Segundo a norma técnica que trata da atenção humanizada ao abortamento:
[4]"o Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses casos e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o abortamento. "(pag. 13)
Diante da necessidade apenas da palavra da mulher, um dos principais argumentos apresentados é de que, não havendo boletim de ocorrência do estupro, a mesma poderia mentir, abrindo possibilidade para fraudes e a consequente criminalização do/a médico.  Diante disso, a mesma nota reafirma o Código Penal Brasileiro:
"O(a) médico(a) e demais profissionais de saúde não devem temer possíveis consequências jurídicas, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi resultado de violência sexual, pois 'é isento de pena quem, por erro plenamente justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse, tornaria a ação legítima'(Código Penal, art. 20, § 1º)." (pag.13)
 Além disso, em agosto deste ano, o governo federal sancionou integralmente o projeto de lei n° 12.845 que prevê atendimento integral às vítimas de violência sexual em todos os serviços de urgência e emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, as diretrizes já definidas pelo Ministério da Saúde, desde 2004, na Política Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, tornaram-se lei.
Infelizmente a lei, assim como a decisão as mulheres, não tem sido respeitada. Sabemos que cotidianamente as mulheres são submetidas aos mais diversos constrangimentos, seja para buscar o abortamento legal, seja para denunciar estupradores.
No ano de 2012 os movimentos sociais foram chamados para auxiliar a Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que tinha como objetivo investigar a situação da violência contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para proteger as mulheres em situação de violência. Diante dos muitos relatos de não cumprimento da norma técnica em relação ao abortamento humanizado, os movimentos feministas gaúchos realizaram uma pesquisa ligando para os hospitais indicados para o atendimento em caso de gravidez em decorrência de violência sexual. Tal intento apenas confirmou aquilo que as mulheres vinham denunciando. Apenas o Hospital de Clínicas de Porto Alegre orientou corretamente, sem constranger ou buscar impedimentos desnecessários e ilegais para o atendimento.[5]
Culpabilização da Mulher e a omissão do Estado
Vivemos numa sociedade patriarcal, ou seja, que está estruturada sobre o poder masculino. Dessa forma, enquanto a cultura machista transforma nossas diferenças biológicas em desigualdades sociais, atribui à mulher características que formam uma ideologia misógina. Portanto, constrói uma imagem de mulher com determinadas características e busca tratá-la como algo natural, determinado pelo biológico. Ao passo que despreza tudo o que está relacionado com a ideia de feminino. Um exemplo disso é a relação da mulher com a maternidade e a possibilidade de interrompê-la. Dessa forma, nem a prática do aborto, nem o controle sobre o corpo das mulheres é algo novo. 
“A decisão de fazer aborto não é algo da sociedade moderna. Historicamente, as mulheres têm recorrido a esta prática como forma de diminuir os partos. Na China, séculos antes de Cristo havia textos médicos com receitas de abortivos. Na Grécia Antiga se recorreu ao aborto como uma forma de equilibrar os nascimentos e tornar estáveis as populações. E mesmo o cristianismo não tratou da mesma forma essa questão. Em suas teses sobre quando a alma se vinculava ao feto, que no caso das mulheres era mais tardia, possibilitava maior flexibilidade em relação ao aborto. A criminalização do aborto é mais ostensiva principalmente após a Segunda Guerra Mundial, onde os países precisam repor a mão de obra trabalhadora, ou seja, a questão do aborto é também utilizada a partir dos interesses econômicos da sociedade.” (FARIA, pág.3, 2013)
Entre as características atribuídas às mulheres está o imaginário da pecadora, da ardilosa e mentirosa, a Eva que tirou Adão do paraíso e imputou a todas as outras o dever da submissão e da dor. Diante disso, como pode uma lei basear-se na palavra de uma potencial enganadora? E se ela mentir? E se a gravidez for fruto de uma relação consentida? Ela deveria ter se cuidado. E se o estupro ocorreu porque ela estava vestida inadequadamente? E se ela provocou? O parágrafo traz as frases que externalizam o pensamento da sociedade patriarcal, baseada na ideia da mulher como um ser ardiloso, inferior, carregado do imaginário cristão-ocidental da mulher pecadora.
Esse imaginário está expresso nas dificuldades que as mulheres vêm encontrando para acessar nada além do seu direito de ter acesso humanizado ao abortamento legal. Tem importado mais ao sistema de saúde continuar levantando a hipótese do falso testemunho do que prestar atendimento a uma mulher que foi violentada, estuprada, ferida, e quem sabe, contaminada com doenças sexualmente transmissíveis.
A dura realidade das mulheres que tem esse direito negado constitui uma grave violação dos direitos humanos das mulheres. Além disso, é uma violência que tem endereço certo. Está direcionada para mulheres pobres e consequentemente, considerando a realidade racial brasileira, às mulheres negras. Dessa forma, negar o atendimento legal ao abortamento é, além da violação dos direitos humanos, uma violência de classe e de raça.
Violação dos direitos humanos das mulheres
Os direitos humanos das mulheres em relação à sua saúde sexual e reprodutiva são alvos frequentes de ataques e violações. No Brasil, setores conservadores estão empenhados em não só proibir um avanço da legislação no que tange ao direito de decidir das mulheres sobre seus corpos e suas vidas, como também em promover um retrocesso aos direitos já conquistados.
De tempos em tempos, surgem no Congresso Nacional novos projetos de lei visando proibir o abortamento legal, como por exemplo, o projeto do Estatuto do Nascituro e o projeto que prevê uma “Bolsa-estupro” às mulheres que optarem por manter a gestação oriunda de violência sexual. Ademais, o crescimento das bancadas religiosas e a influência da religião nas decisões públicas ferem a laicidade do Estado.
O movimento feminista denuncia esses ataques e considera qualquer iniciativa de retrocesso aos direitos das mulheres como uma violação aos direitos humanos. É preciso a criação urgente de políticas que visem acolher e assistir as mulheres em situação de abortamento legal, punindo àqueles que se neguem a dar o amparo ou discriminem essas mulheres. É preciso fomentar o debate sobre a descriminalização e legalização do aborto no Brasil, pois só assim abortos clandestinos deixarão de levar milhares de mulheres à morte todos os anos.
Referências Bibliográficas
FARIA, Nalu. Entre a autonomia e a criminalização: a realidade do aborto no Brasil. Disponível em: http://www.sof.org.br/textos/17
CAVALCANTE, Alcilene; XAVIER, Dulce (orgs.). Em defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo Direito de Decidir, 2006.
Sites consultados:




[1]                      Cientista Social. Mestranda em Educação pela UFRGS. Militante da Marcha Mundial das Mulheres/RS
[2]                    Advogada. Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul. Militante da Marcha Mundial das Mulheres/RS.
[3]                      Trata-se de decisão proferida por maioria de votos na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 54 proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde/CNTS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204878. Acesso em 31/10/2013
[4]                      Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/atencao_humanizada.pdf. Acesso em 31/10/2013
[5]                      Dossiê do Movimento de Mulheres do Rio Grande do Sul à Comissão Parlamentar Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/download/SubdaMulher/Anexo%201.PDF Acesso em 31/10/2013

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