Muitos são os direitos humanos das mulheres que são
cotidianamente desrespeitados. Violência física, moral, patrimonial e sexual
fazem parte da vida de muitas. Contudo, tão cruel quanto essa realidade, é a
falta de garantia ao acesso às políticas públicas que buscam combater e
minimizar os traumas gerados.
O Brasil, apesar de ter em sua Constituição Federal
a afirmação de que se trata de um Estado laico, vem convivendo com uma ofensiva
dos setores conservadores que buscam retrocessos justamente nos direitos
sexuais e reprodutivos das mulheres. Assim, quando a autonomia das mulheres
sobre o próprio corpo passa a ser cerceada por projetos de lei de cunho
religioso e fundamentalista como estamos vendo nos últimos tempos, não só o
conceito de Estado laico, mas também de Democracia precisa ser discutida.
Nesse sentido, por compreender que negar o direito a
decidir sobre o próprio corpo, em especial, nos casos garantidos por lei, é uma
grave violação dos direitos humanos das mulheres, optamos por tratar do (não) atendimento
humanizado ao abortamento legal na cidade de Porto Alegre.
O que diz a legislação
Ainda
hoje, a legislação sobre o direito ao aborto difere muito de um país para
outro. No Brasil a interrupção voluntária da gravidez é considerada crime
contra a vida, gerando pena de um a três anos de prisão para a mulher que
provoque ou permita que outra pessoa lhe provoque, segundo o Art. 124 do Código
Penal, em vigência desde 1940.
Até o ano
de 2012, apenas em dois casos o aborto não era punido: risco de vida para a
gestante (aborto necessário) e gravidez resultante de estupro, ambos
tipificados no Art. 128 do Código Penal Brasileiro. A partir de 2012, após
julgamento do STF[3],
também se permitiu o abortamento em casos comprovados de feto anencéfalo
(aborto terapêutico). Nesses casos, o governo brasileiro é obrigado a fornecer
gratuitamente o abortamento pelo Sistema Único de Saúde.
Como deveria ser o atendimento
Apesar da
obrigatoriedade de total amparo médico na realização do abortamento nas
hipóteses citadas, as mulheres enfrentam duras realidades nos hospitais
públicos país a fora.
Para ter
acesso a interrupção da gravidez em caso de estupro, basta que a mulher declare
que a gravidez resultou de ato sexual não consensual. Não é preciso a
apresentação do boletim de ocorrência, tampouco qualquer tipo de exame.
Segundo a
norma técnica que trata da atenção humanizada ao abortamento:
[4]"o
Código Penal não exige qualquer documento para a prática do abortamento nesses
casos e a mulher violentada sexualmente não tem o dever legal de noticiar o
fato à polícia. Deve-se orientá-la a tomar as providências policiais e
judiciais cabíveis, mas, caso ela não o faça, não lhe pode ser negado o
abortamento. "(pag. 13)
Diante da
necessidade apenas da palavra da mulher, um dos principais argumentos
apresentados é de que, não havendo boletim de ocorrência do estupro, a mesma
poderia mentir, abrindo possibilidade para fraudes e a consequente
criminalização do/a médico. Diante
disso, a mesma nota reafirma o Código Penal Brasileiro:
"O(a)
médico(a) e demais profissionais de saúde não devem temer possíveis
consequências jurídicas, caso revele-se posteriormente que a gravidez não foi
resultado de violência sexual, pois 'é isento de pena quem, por erro plenamente
justificado pelas circunstâncias, supõe situação de fato que, se existisse,
tornaria a ação legítima'(Código Penal, art. 20, § 1º)." (pag.13)
Além disso, em agosto deste ano,
o governo federal sancionou integralmente o projeto de lei n° 12.845 que prevê
atendimento integral às vítimas de violência sexual em todos os serviços de
urgência e emergência do Sistema Único de Saúde (SUS). Dessa forma, as
diretrizes já definidas pelo Ministério da Saúde, desde 2004, na Política
Nacional de Atenção Integral à Saúde da Mulher, tornaram-se lei.
Infelizmente
a lei, assim como a decisão as mulheres, não tem sido respeitada. Sabemos que
cotidianamente as mulheres são submetidas aos mais diversos constrangimentos,
seja para buscar o abortamento legal, seja para denunciar estupradores.
No ano de
2012 os movimentos sociais foram chamados para auxiliar a Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito que tinha como objetivo investigar a situação da violência
contra a mulher no Brasil e apurar denúncias de omissão por parte do poder
público com relação à aplicação de instrumentos instituídos em lei para
proteger as mulheres em situação de violência. Diante dos muitos relatos de não
cumprimento da norma técnica em relação ao abortamento humanizado, os
movimentos feministas gaúchos realizaram uma pesquisa ligando para os hospitais
indicados para o atendimento em caso de gravidez em decorrência de violência
sexual. Tal intento apenas confirmou aquilo que as mulheres vinham denunciando.
Apenas o Hospital de Clínicas de Porto Alegre orientou corretamente, sem constranger
ou buscar impedimentos desnecessários e ilegais para o atendimento.[5]
Culpabilização da Mulher e a
omissão do Estado
Vivemos
numa sociedade patriarcal, ou seja, que está estruturada sobre o poder
masculino. Dessa forma, enquanto a cultura machista transforma nossas
diferenças biológicas em desigualdades sociais, atribui à mulher
características que formam uma ideologia misógina. Portanto, constrói uma
imagem de mulher com determinadas características e busca tratá-la como algo
natural, determinado pelo biológico. Ao passo que despreza tudo o que está
relacionado com a ideia de feminino. Um
exemplo disso é a relação da mulher com a maternidade e a possibilidade de
interrompê-la. Dessa forma, nem a prática do aborto, nem o controle sobre o
corpo das mulheres é algo novo.
“A decisão de fazer aborto não é algo da sociedade
moderna. Historicamente, as mulheres têm recorrido a esta prática como forma de
diminuir os partos. Na China, séculos antes de Cristo havia textos médicos com
receitas de abortivos. Na Grécia Antiga se recorreu ao aborto como uma forma de
equilibrar os nascimentos e tornar estáveis as populações. E mesmo o
cristianismo não tratou da mesma forma essa questão. Em suas teses sobre quando
a alma se vinculava ao feto, que no caso das mulheres era mais tardia,
possibilitava maior flexibilidade em relação ao aborto. A criminalização do
aborto é mais ostensiva principalmente após a Segunda Guerra Mundial, onde os
países precisam repor a mão de obra trabalhadora, ou seja, a questão do aborto
é também utilizada a partir dos interesses econômicos da sociedade.” (FARIA,
pág.3, 2013)
Entre as características
atribuídas às mulheres está o imaginário da pecadora, da ardilosa e mentirosa,
a Eva que tirou Adão do paraíso e imputou a todas as outras o dever da
submissão e da dor. Diante disso, como pode uma lei basear-se na palavra de uma
potencial enganadora? E se ela mentir? E se a gravidez for fruto de uma relação
consentida? Ela deveria ter se cuidado. E se o estupro ocorreu porque ela
estava vestida inadequadamente? E se ela provocou? O parágrafo traz as frases
que externalizam o pensamento da sociedade patriarcal, baseada na ideia da
mulher como um ser ardiloso, inferior, carregado do imaginário
cristão-ocidental da mulher pecadora.
Esse imaginário está expresso
nas dificuldades que as mulheres vêm encontrando para acessar nada além do seu
direito de ter acesso humanizado ao abortamento legal. Tem importado mais ao
sistema de saúde continuar levantando a hipótese do falso testemunho do que
prestar atendimento a uma mulher que foi violentada, estuprada, ferida, e quem
sabe, contaminada com doenças sexualmente transmissíveis.
A dura realidade das mulheres
que tem esse direito negado constitui uma grave violação dos direitos humanos
das mulheres. Além disso, é uma violência que tem endereço certo. Está
direcionada para mulheres pobres e consequentemente, considerando a realidade
racial brasileira, às mulheres negras. Dessa forma, negar o atendimento legal
ao abortamento é, além da violação dos direitos humanos, uma violência de
classe e de raça.
Os direitos humanos das mulheres
em relação à sua saúde sexual e reprodutiva são alvos frequentes de ataques e
violações. No Brasil, setores conservadores estão empenhados em não só proibir
um avanço da legislação no que tange ao direito de decidir das mulheres sobre
seus corpos e suas vidas, como também em promover um retrocesso aos direitos já
conquistados.
De tempos em tempos, surgem no
Congresso Nacional novos projetos de lei visando proibir o abortamento legal,
como por exemplo, o projeto do Estatuto do Nascituro e o projeto que prevê uma
“Bolsa-estupro” às mulheres que optarem por manter a gestação oriunda de
violência sexual. Ademais, o crescimento das bancadas religiosas e a influência
da religião nas decisões públicas ferem a laicidade do Estado.
O movimento feminista denuncia
esses ataques e considera qualquer iniciativa de retrocesso aos direitos das
mulheres como uma violação aos direitos humanos. É preciso a criação urgente de
políticas que visem acolher e assistir as mulheres em situação de abortamento
legal, punindo àqueles que se neguem a dar o amparo ou discriminem essas
mulheres. É preciso fomentar o debate sobre a descriminalização e legalização
do aborto no Brasil, pois só assim abortos clandestinos deixarão de levar
milhares de mulheres à morte todos os anos.
Referências
Bibliográficas
FARIA, Nalu. Entre a autonomia e a criminalização: a
realidade do aborto no Brasil. Disponível em: http://www.sof.org.br/textos/17
CAVALCANTE,
Alcilene; XAVIER, Dulce (orgs.). Em
defesa da vida: aborto e direitos humanos. São Paulo: Católicas pelo
Direito de Decidir, 2006.
Sites consultados:
[2]
Advogada. Mestranda em Direito Ambiental pela Universidade de Caxias do Sul.
Militante da Marcha Mundial das Mulheres/RS.
[3] Trata-se de
decisão proferida por maioria de votos na Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental (ADPF) 54 proposta em 2004 pela Confederação Nacional dos
Trabalhadores da Saúde/CNTS. Disponível em: http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=204878. Acesso em 31/10/2013
[4]
Disponível em: http://portal.saude.gov.br/portal/arquivos/pdf/atencao_humanizada.pdf.
Acesso em 31/10/2013
[5]
Dossiê do Movimento de Mulheres do Rio Grande do Sul à Comissão Parlamentar
Mista de Inquérito sobre a Violência contra a Mulher. Disponível em: http://www.al.rs.gov.br/download/SubdaMulher/Anexo%201.PDF
Acesso em 31/10/2013
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