Sônia Coelho: “O neoliberalismo precariza o trabalho das mulheres”
A educadora popular Sônia Coelho é integrante da Sempreviva Organização Feminista (SOF) e também da Marcha Mundial de Mulheres (MMM).
Militante desde a década de 1980, Coelho foi entrevistada pelo Brasil de Fato para avaliar as organizações políticas das mulheres, traçando paralelos entre os movimentos feministas pela redemocratização no período da ditadura militar e as manifestações no período após o golpe de 2016, em especial contra a candidatura de extrema-direita de Jair Bolsonaro (PSL).
O candidato de extrema-direita une propostas neoliberais para a economia com uma visão depreciativa das mulheres. Para Sônia, o modelo neoliberal necessita do trabalho precarizado que está concentrando nas mulheres.
Brasil de Fato – Como era a forma de organização das mulheres brasileiras no período da redemocratização?
Sonia Coelho – A base de organização das mulheres neste período era nos bairros e a partir de suas condições de vida – na luta por saúde e por transporte, por exemplo. No período da ditadura também tinha a articulação dos movimentos, então o movimento sindical (que era oposição) não tinha espaço tradicional do sindicato e muitas vezes se organizava a partir dos bairros. Havia muita interlocução com os movimentos.
Teve outro ator que contribuiu na organização das mulheres neste período da ditadura que foi a própria igreja – via formação de pastorais, de clube de mães, de clube de mulheres. Então ali estava um pouco dessa base da organização das mulheres. As mulheres nesse período da ditadura fizeram um movimento muito marcante que foi contra a carestia, porque as mulheres também têm essa capacidade de trazer os elementos da vida cotidiana de forma a politizar e a questionar o modelo.
Na ditadura, formou um movimento muito forte que a grande base, inclusive as lideranças, eram de mulheres da periferia que questionaram profundamente o modelo da ditadura e que foi aparecendo como movimento de resistência e de confronto à ditadura. Então, o movimento feminista no Brasil sempre teve essa base popular.
Nesse período dos anos 1970, parte das mulheres da esquerda também saíram para exílio pela ditadura e tiveram muito contato com os movimentos feministas em outros países, e quando essas mulheres voltam para o Brasil são uma força que vai construir grupos para discutir a questão da autoconfiança, da opressão de gênero. Vai ser um fermento que também se encontra com essas mulheres populares e que estão nessa luta cotidiana. Esse movimento vai ser muito forte e vai ser parte dessa luta por redemocratização do país.
As mulheres começaram a participar de movimentos e protestos a partir de um determinado momento histórico ou isso sempre aconteceu?
O que a gente vê na história é que em todos os momentos de transformação da sociedade as mulheres sempre estiveram lá se organizando e participando. Se pegar, por exemplo, a revolução francesa, as mulheres se organizaram – inclusive foi um marco e depois suas líderes foram guilhotinadas.
Se observar todo o processo na América Latina de emancipação, mesmo a luta antiescravagista aqui no Brasil, tem muitas mulheres liderando esses processos de luta. O feminismo é um movimento histórico, internacional e de grande relevância. O problema é que o movimento feminista nunca foi considerado na história como um movimento importante, tanto que precisou das feministas estudarem esse movimento, trazerem a tona esse movimento.
Como você avalia essas novas formas de se manifestar e também utilizando as redes sociais, como as recentes manifestações de mulheres contra o candidato Jair Bolsonaro (PSL)?
Vale lembrar que já tiveram outras reações como essa ao Bolsonaro, como contra o Eduardo Cunha [em 2015 e 2016]. Naquele momento ninguém colocava o “Fora Cunha” como elemento fundamental para a situação que a gente estava vivendo. O PT, que era mais diretamente implicado, não colocava, os movimentos não colocavam, e nós na Marcha das Margaridas colocamos o “Fora Cunha”. Quando foi chegando mais para o final do ano, ele também foi apresentando os projetos dele – do estatuto do nascituro, “bolsa estupro”, aqueles projetos horríveis todos – estourou o que foi chamado de "Primavera Feminista".
Não foram só os movimentos organizados, mas milhares de mulheres. E havia muitas jovens também naquele processo de ocupação das escolas, no qual as meninas tiveram muito protagonismo e que foi um momento importante no Brasil de resistência das mulheres e de denunciar Cunha como um dos principais sujeitos políticos no golpe.
Outro elemento que temos que contextualizar é que nós, dos movimentos organizados, denunciamos desde os anos 2000 o crescimento do conservadorismo no Brasil. Isso se expressa de forma visível com golpe na sua forma tão misógina contra Dilma Rousseff.
Então muitos movimentos começam a entender que o neoliberalismo não está tão afastado do conservadorismo. As mulheres estão cada vez mais conquistando espaços públicos, querendo autonomia, lutando por liberdade e igualdade, então não são sujeitos que interessam ao neoliberalismo. Porque o neoliberalismo também precisa continuar tendo uma mão de obra subserviente, precária, barata e isso está concentrado nas mulheres.
As mulheres precisam continuar a fazer todo o trabalho doméstico – que gera riqueza e tem um valor econômico que nós queremos distribuir, compartilhar, na sociedade com as políticas públicas. Para o neoliberalismo é ao contrário: todo este trabalho precisa ser feito por nós porque o Estado precisa ser mínimo. Se o Estado precisa ser mínimo, não pode ter políticas públicas para compartilhar trabalho doméstico e então precisa que as mulheres estejam neste lugar.
E vemos no Bolsonaro isso muito explícito. O Bolsonaro deprecia as mulheres, coloca as mulheres como seres inúteis, seres reprodutores apenas e com extrema violência, que é um elemento muito importante, porque a violência é um mecanismo para controlar o corpo, a vida, e colocar em um lugar de subordinação. Ele utiliza da violência contra as mulheres explicitamente.
O feminismo sempre teve a capacidade de olhar esse todo, de olhar o modelo de forma integral e de como esse modelo necessita da exploração das mulheres para se manter e se alimentar tal como é – também do racismo.
Acredito que neste momento é muito importante essa reação das mulheres porque mostra também a capacidade delas resistirem. A internet ajuda, porque os meios de comunicação são totalmente ligados a esse modelo neoliberal de dominação e jamais dariam espaço para as mulheres fazerem o nível de crítica que conseguem fazer pelas redes.
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