por Carol Radd -
Para tirar o cheiro de mofo nesse blog* nada mais instigador que a comemoração do aniversário do exemplo de mulher que foi a filósofa francesa Simone de Beauvoir que nesta quinta, 09/01, faria 106 anos.
Para tirar o cheiro de mofo nesse blog* nada mais instigador que a comemoração do aniversário do exemplo de mulher que foi a filósofa francesa Simone de Beauvoir que nesta quinta, 09/01, faria 106 anos.
Como não parar um pouquinho para uma
homenagem a essa bela mulher, que embora tenha sido conhecida mais em
função de sua relação com o filósofo francês Sartre, tem uma obra
memorável e uma trajetória política inquestionável. Mulher, escritora,
filósofa, amante, de luta, sensível, forte, intensa. Chorou, sorriu,
amou, sofreu as angustias do mundo, sofreu por amor e morreu acreditando
em um mundo melhor.
Tentei pegar um pouquinho das minhas
leituras e escritas dos tempos da Faculdade de Filosofia, quando ouvi
muita piadinha sem graça e machista, por ter, entre uma gama de
filósofos interessantíssimos, escolhido dedicar meus estudos à vida e à
riquíssima obra dessa mulher fantástica, que se estende a ensaios,
romances e memórias. Sem nenhuma pretensão de resumir sua vida e esgotar
seu pensamento que merece bastante empenho e zelo devido a sua
complexidade. É só mesmo, pra dar um gostinho e aguçar a curiosidade de
quem quiser ultrapassar a célebre frase “Ninguém nasce mulher, torna-se
mulher” e o Segundo Sexo (livro quase que obrigatória das feministas) e
enveredar pelo mundo dos romances e novelas (fica a dica do meu
preferido, Todos os homens são mortais).
Francesa, Simone de Beauvoir, nasceu em
1908, foi considerada uma mulher muito além de seu tempo, teve uma
criação burguesa, embora sua família estivesse em decadência. Obteve
três formações acadêmicas, Latim-Letras, Matemática e Filosofia. Sofreu
bastante pressão do pai, que a considerava, pobre e feia demais para
arrumar um marido (essa parte eu acho sensacional, risos) sendo o
casamento na época algo fundamental na vida de uma mulher. Devido às
idéias do pai, Beauvoir, torna-se uma jovem oprimida por sua
inteligência fora do comum. (Obs. O pai a influenciou muito nas leituras
e nos estudos, o que foi positivo, embora com argumentos machistas).
Após
a conclusão do curso de filosofia na Sorbone, onde conhece Sartre e
começa sua relação com ele, Beauvoir decide preparar sua agrégation
(admissão por concurso ao título de professora-titular de nível
superior), no qual ela passa em segundo lugar. Sartre passa em primeiro.
(Tem um filme francês maravilhoso de 2006, dirigido por Ilan Duran
Cohen, Les Amants du Flore, que retrata essa parte de sua vida, vale a pena e não é difícil achar disponível na net).
Beauvoir expressa em sua vida àquilo
que escrevia em sua obra, em suas escolhas colocava em prática as suas
idéias de independência e liberdade, se dedica com afinco aos estudos,
dando uma especial atenção às questões do universo feminino. Demonstrava
profundo desprezo por toda a disciplina moral e familiar e recusa o
pedido de casamento feito por Sartre, pois não queria aderir aos moldes
das obrigações familiares e sociais, nem alterar a originalidade
inestimável de suas relações pessoais.
Foi bastante criticada ao quebrar tabus quando fala em sexualidade feminina e o corpo da mulher, “O Segundo Sexo”
sua obra mais conhecida, usada como referência nos estudos das questões
de gênero foi colocado no index pelo Vaticano, apesar do sucesso que
propiciou a tradução em vinte idiomas.
É nessa obra que Beauvoir desenvolve
sua teoria que caracteriza a mulher como uma construção social,
afirmando que o gênero feminino não está ligado aos fatores biológicos
como o sexo, mas às influencias culturais, e ao longo do tempo vão
conquistando seu espaço de igualdade junto aos homens. Resume o processo
de socialização, regente da existência dos indivíduos. Ou seja,
refere-se à modelagem dos corpos pelas normas e as representações
próprias, culturais e simbólicas, de cada sociedade.
Para além dos modelos filosóficos da
tradição e que tratam de temas conexos, como fazem os filósofos
existencialistas, Beauvoir abre as portas a uma forma nova em que o
feminino se instala como personagem principal, destituindo, pois, de
validade, toda formulação cognitiva que se demonstra neutra ou
universal. De outra feita, as análises de Beauvoir também tomarão, como
os demais existencialistas, o indivíduo como ponto de partida, mas seu
pensamento não permanece estanque à sua dimensão reflexiva.
Beauvoir procura discutir conceitos
filosóficos através de seus textos narrativos, de ficção, de memória e
ensaios propriamente ditos. É, pois, na categoria do outro, que as
análises de Beauvoir ganham fôlego na crítica à filosofia tradicional e o
sentido de ambiguidade torna-se fator de correlação dos vários
pensamentos que, igualmente, abordam a tradição, mas de perspectivas
diversas, seja de cunho ético, de cunho político ou meramente histórico.
Seus textos se erguem entre o significado moral de sua própria
valoração do mundo, ampliando-se pelo horizonte político-feminista em
que a dimensão de alteridade realça sua face crítica da aventura humana.
Essa aventura, que exige movimento,
ousadia, deve ser lida da perspectiva da ambiguidade, de uma dimensão
moral que assume os riscos dos fracassos, das angústias humanas. E
Beauvoir nos confirma: “Para atingir sua verdade, o homem não deve
tentar dissipar a ambiguidade de seu ser, mas, ao contrário, aceitar
realizá-la”. Para a filósofa existir autenticamente é se recusar a
permanecer no movimento espontâneo da transcendência. O homem existe
livremente para definir suas próprias condições e traçar os seus
projetos de forma que assuma seus fracassos.
A própria Beauvoir, em uma entrevista
publicada em Feminist Studies, em 1979, afirma que Sartre seria o
filósofo e não ela. Essa mesma assertiva já pode ser lida em sua obra de
memória, A Força da Idade, publicada nos anos 60. Para a filósofa
feminista argentina, Maria Luísa Femenías, uma interpretação viável para
a recusa da própria Beauvoir enquanto filósofa se deu no fato do
domínio da filosofia servir a uns poucos, sendo estes do sexo masculino,
não sendo permitido, ao longo da história, contribuições femininas para
este saber, e ela enquanto mulher, não fazia parte dos criadores do
sistema. Dessa perspectiva, a escolha de Beauvoir em fugir da imagem de
filósofa se refere ao fato de não ser para ela possível nenhuma
cumplicidade com o saber imposto pelo patriarcado.
Em meio a tantos argumentos sobre os
textos de Beauvoir serem ou não filosóficos, e se o feminino pode ser
tomado como um sujeito e um objeto do filosofa pode-se concluir que os
textos de Beauvoir fogem dos padrões sistêmicos e se impõem como
possibilidades de pensar as relações intersubjetivas, assim como os
princípios normativos tanto ontológicos, quanto políticos, da
perspectiva da alteridade e não da identidade, realçando ser a mulher o
grande outro da cultura.
E na convergência entre filosofia e
literatura da narrativa nos deparamos com conceitos existencialistas que
nos permitem extrair da sua obra o significado do ser mulher, defendido
em O Segundo Sexo, evidenciando o pensamento que fundamenta a filosofia beauvoiriana do feminino como ser outro.
Beauvoir usa de seus romances para
criar estórias nas quais seus personagens representam conceitos, e assim
a narrativa é transformada em discurso filosófico. Sendo assim é
impossível separar em Beauvoir a narrativa da filosofia, pois ela
escreve com a intenção de induzir suas personagens a questionamentos
filosóficos que busquem legitimar sua condição de sujeito livre.
Vale mencionar o trecho de A convidada,
no qual é possível perceber tal característica através da personagem
Françoise que, ao se conscientizar de uma outra existência, se angustia e
como forma de transcender seus limites fáticos e existenciais procura
incessantemente alimentar-se do desejo de morte do outro.
“Frente a Françoise e, apesar disso, sem a sua participação, despontava algo que constituía uma condenação sem recurso; levanta-se uma consciência estranha, livre, absoluta, irredutível. Era como a morte: uma negação total, uma ausência eterna e, no entanto, por uma contradição perturbadora, esse abismo do nada podia tornar-se presente a si próprio e começar a existir, por si, em toda a plenitude. O universo inteiro era absorvido por ele.”
Françoise ao perceber a presença do
outro, se sente invadida e ameaçada, sua liberdade é violada pela
existência de uma outra consciência, também livre como a sua, que a
ameaça simplesmente por existir. Este lema, como um alento hegeliano por
excelência, encontra nos quadros fictícios de Beauvoir, reflexões
representativas, cujo sentido, o leitor deve buscar em verdadeiro
processo fenomenológico de descoberta de sua própria capacidade
reflexiva e argumentativa.
Não se pode, pois, deixar de mencionar
que, a grandeza do pensamento de Simone de Beauvoir está, justamente, na
sua reiterada tentativa de quebrar os cânones da tradição sistêmica e
logocêntrica e apresentar modelos interpretativos da existência humana,
fora de sistemas filosóficos que se legitimam a si mesmos. Em linguagem e
em estilo novos, ela propicia que literatura e filosofia dialoguem
entre si, como marcos teórico-discursivos da reflexão humana. Em seu
texto Literatura e Metafísica, publicado originalmente, em 1946, na
Revista Les Temps Modernes (fundada juntamente com Sartre
em 1945), Beauvoir destaca a intrínseca e sutil relação entre ficção e
pensamento filosófico, entendendo que, “enquanto o filósofo e o ensaísta
entregam ao leitor uma reconstrução intelectual de sua experiência, o
novelista pretende restituir em um plano imaginário essa experiência
mesma.”
Em 1947 quando foi aos Estados Unidos
para dar uma série conferências conheceu o escritor Nelson Algren, por
quem se apaixonou e com quem viveu um romance à distância, marcado por muitas cartas e
muitas viagens. Dizem ter sido o grande e verdade amor de sua vida,
apesar da cumplicidade que havia entre a Beauvoir e Sartre.
Engajada politicamente, sob referencias
marxistas, participou de diversas atividades políticas junto com Sartre,
ficaram conhecidos por unir a atividade intelectual a vida
política, viajaram à então União Soviética, à China, à Suécia, ao
Brasil, o que colocou o casal em evidencia entre 1950 e 1960. Em 1954,
Simone publicou Os Mandarins, com o qual ganhou o Prêmio
Goncourt, considerado por muitos seu melhor romance. O livro trata da
vida pessoal de um grupo de intelectuais franceses no final da segunda
guerra até os anos 50, as perdas, sofrimento, amores, obviamente faz
referencia ao que o grupo existencialista fundadores da Les Temps
Modernes estava vivendo naquele período de caos. Como em suas outras
obras, Beauvoir trabalha com o tema da mulher, do existencialismo e da
moralidade.
Nos anos 70 Beauvoir passa a apoiar
oficialmente as ações do movimento feminista e em 1974 cria a Ligue du
Droit des Femmes para lutar contra todas as violências perpetradas
contra as mulheres. Em 1981 publica seu ultimo livro A Cerimônia do Adeus no qual ela faz um relato dos ultimos anos de sua vida com Sartre e morre em 1986.
Por Carol Radd – militante da Marcha
Mundial das Mulheres Minas Gerais, licenciada em filosofia e mestranda
em Sociologia. Post republicado do blog Maria Maria
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