quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

Por trás de uma grande mulher…

por Carol Radd -
Para tirar o cheiro de mofo nesse blog* nada mais instigador que a comemoração do aniversário do exemplo de mulher que foi a filósofa francesa Simone de Beauvoir que nesta quinta, 09/01, faria 106 anos.
Como não parar um pouquinho para uma homenagem a essa bela mulher, que embora tenha sido conhecida mais em função de sua relação com o filósofo francês Sartre, tem uma obra memorável e uma trajetória política inquestionável. Mulher, escritora, filósofa, amante, de luta, sensível, forte, intensa. Chorou, sorriu, amou, sofreu as angustias do mundo, sofreu por amor e morreu acreditando em um mundo melhor.
Tentei pegar um pouquinho das minhas leituras e escritas dos tempos da Faculdade de Filosofia, quando ouvi muita piadinha sem graça e machista, por ter, entre uma gama de filósofos interessantíssimos, escolhido dedicar meus estudos à vida e à riquíssima obra dessa mulher fantástica, que se estende a ensaios, romances e memórias. Sem nenhuma pretensão de resumir sua vida e esgotar seu pensamento que merece bastante empenho e zelo devido a sua complexidade. É só mesmo, pra dar um gostinho e aguçar a curiosidade de quem quiser ultrapassar a célebre frase “Ninguém nasce mulher, torna-se mulher” e o Segundo Sexo (livro quase que obrigatória das feministas) e enveredar pelo mundo dos romances e novelas (fica a dica do meu preferido, Todos os homens são mortais).
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Francesa, Simone de Beauvoir, nasceu em 1908, foi considerada uma mulher muito além de seu tempo, teve uma criação burguesa, embora sua família estivesse em decadência. Obteve três formações acadêmicas, Latim-Letras, Matemática e Filosofia. Sofreu bastante pressão do pai, que a considerava, pobre e feia demais para arrumar um marido (essa parte eu acho sensacional, risos) sendo o casamento na época algo fundamental na vida de uma mulher. Devido às idéias do pai, Beauvoir, torna-se uma jovem oprimida por sua inteligência fora do comum. (Obs. O pai a influenciou muito nas leituras e nos estudos, o que foi positivo, embora com argumentos machistas).
filme-_les_amants_du_floreApós a conclusão do curso de filosofia na Sorbone, onde conhece Sartre e começa sua relação com ele, Beauvoir decide preparar sua agrégation (admissão por concurso ao título de professora-titular de nível superior), no qual ela passa em segundo lugar. Sartre passa em primeiro. (Tem um filme francês maravilhoso de 2006, dirigido por Ilan Duran Cohen, Les Amants du Flore, que retrata essa parte de sua vida, vale a pena e não é difícil achar disponível na net).
Beauvoir expressa em sua vida àquilo que escrevia em sua obra, em suas escolhas colocava em prática as suas idéias de independência e liberdade, se dedica com afinco aos estudos, dando uma especial atenção às questões do universo feminino. Demonstrava profundo desprezo por toda a disciplina moral e familiar e recusa o pedido de casamento feito por Sartre, pois não queria aderir aos moldes das obrigações familiares e sociais, nem alterar a originalidade inestimável de suas relações pessoais.  
Foi bastante criticada ao quebrar tabus quando fala em sexualidade feminina e o corpo da mulher, “O Segundo Sexo” sua obra mais conhecida, usada como referência nos estudos das questões de gênero foi colocado no index pelo Vaticano, apesar do sucesso que propiciou a tradução em vinte idiomas.
É nessa obra que Beauvoir desenvolve sua teoria que caracteriza a mulher como uma construção social, afirmando que o gênero feminino não está ligado aos fatores biológicos como o sexo, mas às influencias culturais, e ao longo do tempo vão conquistando seu espaço de igualdade junto aos homens. Resume o processo de socialização, regente da existência dos indivíduos. Ou seja, refere-se à modelagem dos corpos pelas normas e as representações próprias, culturais e simbólicas, de cada sociedade.
Para além dos modelos filosóficos da tradição e que tratam de temas conexos, como fazem os filósofos existencialistas, Beauvoir abre as portas a uma forma nova em que o feminino se instala como personagem principal, destituindo, pois, de validade, toda formulação cognitiva que se demonstra neutra ou universal. De outra feita, as análises de Beauvoir também tomarão, como os demais existencialistas, o indivíduo como ponto de partida, mas seu pensamento não permanece estanque à sua dimensão reflexiva.
Beauvoir procura discutir conceitos filosóficos através de seus textos narrativos, de ficção, de memória e ensaios propriamente ditos. É, pois, na categoria do outro, que as análises de Beauvoir ganham fôlego na crítica à filosofia tradicional e o sentido de ambiguidade torna-se fator de correlação dos vários pensamentos que, igualmente, abordam a tradição, mas de perspectivas diversas, seja de cunho ético, de cunho político ou meramente histórico. Seus textos se erguem entre o significado moral de sua própria valoração do mundo, ampliando-se pelo horizonte político-feminista em que a dimensão de alteridade realça sua face crítica da aventura humana.
Essa aventura, que exige movimento, ousadia, deve ser lida da perspectiva da ambiguidade, de uma dimensão moral que assume os riscos dos fracassos, das angústias humanas. E Beauvoir nos confirma: “Para atingir sua verdade, o homem não deve tentar dissipar a ambiguidade de seu ser, mas, ao contrário, aceitar realizá-la”. Para a filósofa existir autenticamente é se recusar a permanecer no movimento espontâneo da transcendência. O homem existe livremente para definir suas próprias condições e traçar os seus projetos de forma que assuma seus fracassos.
A própria Beauvoir, em uma entrevista publicada em Feminist Studies, em 1979, afirma que Sartre seria o filósofo e não ela. Essa mesma assertiva já pode ser lida em sua obra de memória, A Força da Idade, publicada nos anos 60. Para a filósofa feminista argentina, Maria Luísa Femenías, uma interpretação viável para a recusa da própria Beauvoir enquanto filósofa se deu no fato do domínio da filosofia servir a uns poucos, sendo estes do sexo masculino, não sendo permitido, ao longo da história, contribuições femininas para este saber, e ela enquanto mulher, não fazia parte dos criadores do sistema. Dessa perspectiva, a escolha de Beauvoir em fugir da imagem de filósofa se refere ao fato de não ser para ela possível nenhuma cumplicidade com o saber imposto pelo patriarcado.
Em meio a tantos argumentos sobre os textos de Beauvoir serem ou não filosóficos, e se o feminino pode ser tomado como um sujeito e um objeto do filosofa pode-se concluir que os textos de Beauvoir fogem dos padrões sistêmicos e se impõem como possibilidades de pensar as relações intersubjetivas, assim como os princípios normativos tanto ontológicos, quanto políticos, da perspectiva da alteridade e não da identidade, realçando ser a mulher o grande outro da cultura.
E na convergência entre filosofia e literatura da narrativa nos deparamos com conceitos existencialistas que nos permitem extrair da sua obra o significado do ser mulher, defendido em O Segundo Sexo, evidenciando o pensamento que fundamenta a filosofia beauvoiriana do feminino como ser outro.
Beauvoir usa de seus romances para criar estórias nas quais seus personagens representam conceitos, e assim a narrativa é transformada em discurso filosófico. Sendo assim é impossível separar em Beauvoir a narrativa da filosofia, pois ela escreve com a intenção de induzir suas personagens a questionamentos filosóficos que busquem legitimar sua condição de sujeito livre.
Vale mencionar o trecho de A convidada, no qual é possível perceber tal característica através da personagem Françoise que, ao se conscientizar de uma outra existência, se angustia e como forma de transcender seus limites fáticos e existenciais procura incessantemente alimentar-se do desejo de morte do outro.
“Frente a Françoise e, apesar disso, sem a sua participação, despontava algo que constituía uma condenação sem recurso; levanta-se uma consciência estranha, livre, absoluta, irredutível. Era como a morte: uma negação total, uma ausência eterna e, no entanto, por uma contradição perturbadora, esse abismo do nada podia tornar-se presente a si próprio e começar a existir, por si, em toda a plenitude. O universo inteiro era absorvido por ele.”
Françoise ao perceber a presença do outro, se sente invadida e ameaçada, sua liberdade é violada pela existência de uma outra consciência, também livre como a sua, que a ameaça simplesmente por existir. Este lema, como um alento hegeliano por excelência, encontra nos quadros fictícios de Beauvoir, reflexões representativas, cujo sentido, o leitor deve buscar em verdadeiro processo fenomenológico de descoberta de sua própria capacidade reflexiva e argumentativa.
Não se pode, pois, deixar de mencionar que, a grandeza do pensamento de Simone de Beauvoir está, justamente, na sua reiterada tentativa de quebrar os cânones da tradição sistêmica e logocêntrica e apresentar modelos interpretativos da existência humana, fora de sistemas filosóficos que se legitimam a si mesmos. Em linguagem e em estilo novos, ela propicia que literatura e filosofia dialoguem entre si, como marcos teórico-discursivos da reflexão humana. Em seu texto Literatura e Metafísica, publicado originalmente, em 1946, na Revista Les Temps Modernes (fundada juntamente com Sartre em 1945), Beauvoir destaca a intrínseca e sutil relação entre ficção e pensamento filosófico, entendendo que, “enquanto o filósofo e o ensaísta entregam ao leitor uma reconstrução intelectual de sua experiência, o novelista pretende restituir em um plano imaginário essa experiência mesma.”
Em 1947 quando foi aos Estados Unidos para dar uma série conferências conheceu o escritor Nelson Algren,  por quem se apaixonou e com quem viveu um romance à distância, marcado por muitas cartas e muitas viagens. Dizem ter sido o grande e verdade amor de sua vida, apesar da cumplicidade que havia entre a Beauvoir e Sartre.
Engajada politicamente, sob referencias marxistas, participou de diversas atividades políticas junto com Sartre, ficaram conhecidos por unir a atividade intelectual a vida política, viajaram à então União Soviética, à China, à Suécia, ao Brasil, o que colocou o casal em evidencia entre 1950 e 1960. Em 1954, Simone publicou Os Mandarins, com o qual ganhou o Prêmio Goncourt, considerado por muitos seu melhor romance.  O livro trata da vida pessoal de um grupo de intelectuais franceses no final da segunda guerra até os anos 50, as perdas, sofrimento, amores, obviamente faz referencia ao que o grupo existencialista fundadores da Les Temps Modernes estava vivendo naquele período de caos. Como em suas outras obras, Beauvoir trabalha com o tema da mulher, do existencialismo e da moralidade. 
 Nos anos 70 Beauvoir passa a apoiar oficialmente as ações do movimento feminista e em 1974 cria a Ligue du Droit des Femmes para lutar contra todas as violências perpetradas contra as mulheres. Em 1981 publica seu ultimo livro A Cerimônia do Adeus no qual ela faz um relato dos ultimos anos de sua vida com Sartre e morre em 1986.
Por Carol Radd – militante da Marcha Mundial das Mulheres Minas Gerais, licenciada em filosofia e mestranda em Sociologia. Post republicado do blog Maria Maria

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