Por Bruna Rocha*
Ódio. Nojo. Asco. Uma sede insaciável
de justiça e tão poucas ferramentas efetivas para alcançá-la na
institucionalidade. A primeira coisa que pensamos quando sabemos, ou
pior, quando VEMOS um caso de estupro bárbaro como o que ocorreu semana é
na potência de nossas próprias mãos.
A cultura do estupro é uma logística
social: uma sistemática brutalização de corpos e vidas. Vidas de
estupradores, vidas de estupradas, vida estuprada. Uma cultura, ou, como
diria Raymond Williams, “um modo inteiro de vida”.
Neste modo, inteiro modus operandi,
parte de uma estratégia perfeita se consolida: a manutenção de relações
de poder, do primitivo poder do falo, da dominação do corpo das mulheres
pelos homens.
Neste inteiro modo de vida, partes se
esfacelam pelo chão ou explodem pelo ar: partes de nossos corpos, partes
de nossas histórias, partes de nossa memória coletiva: PEDAÇOS!
Despedaçada também fica toda luta da
humanidade por outros marcos civilizatórios: marcos de vida e não de
morte, como os que reinaram até hoje.
Sim, a cultura do estupro é mais
cotidiana do que o audacioso caso dos recém-famosos estupradores
cariocas que publicaram sua carnificina abertamente no Twitter. Sim, a
cultura do estupro é mais antiga do que as novas tecnologias que dão
visibilidade aos (ainda poucos) casos que reluzem por debaixo das
pesadas cortinas da hipócrita moral brasileira. Sim, a cultura do
estupro começa na cantada, perpassa pelo “alisada na bunda” e pode
tranquilamente terminar em morte, porque esse é o modus operandi da
cultura do estupro.
Ele é sustentado por símbolos e por
estruturas concretas. Ele permite que as pessoas riam quando uma
mangueira de posto de gasolina estupra um adesivo de carro com a imagem
de uma presidentA da república. Sim, ele permite que um agente de
segurança pública negligencie uma denúncia: seja de uma dona de casa
sobre o marido ou de uma prostituta sobre o cliente.
Ele, esse modus operandi, esse riso,
esse agente, manda elas (nos manda) para casa, debocham e nós orientam a
resolvermos com nossos próprios homens. Pedem também que esqueçamos
tudo que aconteceu e volte pra nossa vida normal de estupros.
Mas veja que incongruência: como é que esquece que foi estuprada?
A cara daquele monstro com a língua pra
fora ao lado de sua vítima, os comentários legitimadores da barbárie e
todos os assédios nojentos que esse caso me remeteu não saem da minha
cabeça, imagina como não deve estar a cabeça dessa garota.
A grande questão é: depois de tanta dor
e sofrimento, como conseguiremos pensar solução pra nossa vida para
além da animalização que este e outros casos torpes nos imprimem
abruptamente? Como construiremos saídas que reprogramem este modus
operandi que esfacela nossa condição de humanidade, tendo no corpo das
mulheres sua grande arena de manutenção?
Os estupros nas cadeias seriam uma
solução? A lógica do olho por olho? Sim, essa é mesma a vontade de todas
nós num primeiro momento. Eu, como vítima, creio que não veria outra
alternativa racional, pois o estupro é uma lesão que opera mais profundo
do que na nossa carne, ela viola e estupra toda nossa subjetividade.
Nos usurpa a respiração, o discernimento, nos rouba a lucidez.
Mas como conseguiremos pensar para além
do enlouquecimento permanente de nossos corpos pelos estupros, tapas,
pontapés, cantadas, silenciamentos, desamores, ódios, misoginias,
brutalidades?
Vivemos um momento de profunda disputa
ideológica no Brasil. Muitas opiniões esdrúxulas vem sendo reproduzidas
sobre o caso do estupro dos 33 contra 1. Opiniões que ultrapassam os
limites do bom senso e da racionalidade política. O que foi o depoimento
daquele jovem loiro do MBL sobre o caso e quais são as saídas que ele
apresenta? Olha como o patriarcado racista é cruel ao querer dizer que
estupro é coisa de preto favelado e que as feministas que defendem os
direitos humanos legitimam esses bandidos que deveriam apodrecer como
ratos em penitenciárias.
Porque será que ele não fala dos
patrões que estupram as filhas das empregadas ou dos playboys das
baladas que se aproveitam de quaisquer situações de vulnerabilidade de
mulheres para chamar os amigos para uma lambança feminicida nos seus
carros importados?
Porque ele não fala de sua própria
trajetória enquanto menino branco e rico, socializado pela cultura do
estupro das nossas vaginas, do nosso trabalho, dos nossos ventres?
Sim, acabar com a cultura do estupro
passa por debater todas as relações de poder e tudo que é
permanentemente naturalizado pelas nossas instituições. Como é que o
debate da culpabilização da vítima pode ressoar ainda tão forte mas
veias de nosso tecido social, fazendo inclusive mulheres, mães de
família, as vezes nossas próprias mães relativizarem o crime mais óbvio?
Qual chave precisamos virar para fazer esse debate profundamente, não
apenas nas nossas auto organizações feministas, organizações de
esquerda, mas com o conjunto de setores (sobretudo os populares) da
sociedade brasileira?
Creio que é uma resposta que ainda não
encontramos, e que tem ficado cada dia mais difícil encontrar, sendo que
concorremos com a mídia fascista que naturaliza estupros nas novelas e
criminalizam as vítimas no jornalismo, com as igrejas que surgem em cada
esquina enraizando o fundamentalismo religioso castrador de ideologias
libertárias e com o grande capital, para o qual este sistema de
objetificação das mulheres mais parece uma máquina de caça níqueis na
frenética lógica acumuladora sustentada pela mercantilização de nossos
corpos.
Precisamos falar sobre a cultura do
estupro e tudo que vem junto com ela: operadores do Direito (à
manutenção dos privilégios), divisão (sexual) do trabalho, sistema
político (privatizado e machista), democratização d(os fins não
justificam)os meios de comunicação, reforma da educação (sexista,
racista, autoritária e lgbtfobica).
Não, não é à toa que o ministro da
educação de Temer tenha recebido Alexandre Frota para debater os rumos
da pátria estupradora. Sim, Brasil, pátria estupradora.
Escrevi este texto para dizer que este
caso brutal que ocorreu no Rio de Janeiro é o espelho do estado
brasileiro. Este Estado autoritário, por séculos dominado pela elite
estupradora de nossos corpos, riquezas e territórios. Esta elite tem as
mãos, os pés, os pênis e os amigos bem parecidos com o protagonista do
estupro coletivo que estourou essa semana no país. Este Estado, cuja
polícia estupra as periferias, as empreiteiras estupram as cidades, o
agronegócio estupra as sementes, o jornalismo estupra a informação, o
congresso nacional estupra a constituição e a direita derrotada estupra
54 milhões de votos com o adesivos sexualizantes e golpes políticos
costurado por cédulas roubadas do tesouro nacional.
Mas nem por isso, acho que devemos nos
organizar para a morte ou o estupro destes crápulas, não teremos tempo
pra isso e nem precisamos encostar nossas mãos sagradas neste sangue
podre. Tratemos de limpar nosso sangue e ganhar muito mais gente para
esse duelo de titãs, que é a luta de classe, raça e gênero no Brasil.
Entre a democracia e o fascismo, podem estar os 33 anos de Cristo
Crucificado, os 33 estupradores do Rio de Janeiro ou os 33 estupros de
hoje que nós nem sabemos ou sequer talvez conseguimos falar: porque foi
com nós.
Eu sei, irmãs, nossas gargantas estão
secas, mas o sangue envenenado das práticas dos homens nunca vão saciar
essa nossa sede histórica por um outro mundo. Sororidade. Feminismo.
Coragem. Somos a própria água que nos manteve vivas até hoje e que há de
nos fazer sobreviver. E vencer.
*Bruna Rocha é militante da Marcha Mundial das Mulheres na Bahia.
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