sexta-feira, 20 de fevereiro de 2015

Pior do que extinguir a SPM/RS é atacar a conquista! por Maria do Carmo Bittencourt*


Alguns dias atrás parei pra ler um artigo na Zero Hora, não leio este veiculo porque além de ter colunistas machistas, tem uma linha editorial de direita e trabalha para manter o status quo da elite patriarcal. Dito isso, digo que fui ler em função da provocação, publicação da companheira e amiga Ariane Leitão, uma pequena introdução ao post em sua timeline do artigo do atual Secretário de Justiça e Direitos Humanos do RS, Cesar Faccioli.
Sem rodeios ela declara: “Pior do que extinguir a SPM/RS é atacar a conquista! Aí segue o texto do secretário que irá “comandar” as políticas para as gaúchas. Ele utiliza os seguintes termos sobre nossos direitos: ‘Pretendemos o fim da filantropia clientelista, da política do coitadismo e da vitimização que fragiliza e condena a mulher à dependência permanente da ajuda estatal.’
Revolta é pouco…”
segue o link – http://naofo.de/2un0
Apesar de ser Carnaval, vi vários posts no facebook e no twitter com o mesmo sentimento e outros que acharam o secretário coerente, afinal ele fala de fazer politia para “fomentar a autonomia emancipatória da mulher”, fala de manter o trabalho em Rede articulando com o restante do Estado e com a sociedade civil e de qualificar a gestão pública. Utilizando um discurso aparentemente alinhado com as politicas públicas para as mulheres construídas no país nos últimos 12 anos e aqui no RS pelo governo anterior, numa tentativa de afirmar “manteremos o que está bom e vamos avançar”.
Que fique bem claro, espero que vocês leiam o artigo, pois a questão fundamental não está nas afirmações acima, até achei elas legais.
O argumento fundamental, que foi o que provocou revolta, foi o ataque realizado ao que tem sido o cerne, o coração das politicas públicas para as mulheres, a Politica de Enfrentamento a Violência Contra a Mulher. E aqui sei que não estou sozinha e pergunto a todas as profissionais e militantes que, como eu, estudam e trabalham com esta questão complexa:
Ele disse mesmo que muito do que existe e fazemos é “filantropia clientelista”? Que se fez “politica do coitadismo”, da vitimização e da fragilização com as mulheres?
Como assim?
Caso vocês não lembrem, só quem faz politica pública pública é o Estado, no caso da politica da mulher, articulado com a sociedade civil e de forma transversal. Notem, a sociedade civil é parceira, mas não executa sozinha nada que possa ser classificado como politica pública, então as afirmações acima atacam diretamente as politicas implementadas pela SPM/RS e pela SPM/PR, claramente alinhadas em seus discursos e práticas.
Como a politica da mulher, principalmente na área de enfrentamento a violência, tem grandes atravessamentos com a Saúde e a Assistência Social, talvez o Secretário esteja ainda parado lá no século XX, criticando a politica pública antes do SUS e do SUAS, que muito trabalham contra os resquícios do assistencialismo e o clientelismo em toda a área social, basta ver as politicas marcadas pela transversalidade de gênero como o Bolsa Familia, PRONATEC e Parto Natural.
Politica da vitimização? Ou, talvez por questão de pontuação na frase, o Senhor quiz dizer que as mulheres se vitimizam, se fragilizam?
Espero, sinceramente, que o Sr. Secretário escute as profissionais qualificadas, funcionárias públicas da área da Assistencia Social e da Psicologia que trabalham no Centro Estadual de Referencia da Mulher . Estas profissionais podem lhe explicar o que está em todos os textos e documentos que norteiam a politica; não consideramos as mulheres “vitimas” de violência, o conceito central em todas as ações é que as mulheres estão em “situação de violência social e doméstica”. Não é semântica, é diretriz conceitual e politica, considera a violência como um ciclo que precisa ser rompido, considera o machismo estrutural em nossa sociedade que precisa ser enfrentado, considera a individualidade de cada história de vida que forma as mulheres no medo da violência, no medo das piores classificações sociais, na negação a direitos fundamentais como de usar a roupa que quer, estudar e trabalhar no que quer ganhando o mesmo que os homens. Considera que o Estado revitimiza as mulheres quando não as protege de maridos, companheiros, chefes, colegas, pais, irmãos e filhos agressores.
Talvez a vitimização estivesse acontecendo dentro da politica de atuação em rede, a Rede Lilás, onde todas as secretarias, o Judiciário, o Ministério Público, a Defensoria Pública , o Legislativo ONGs com projetos em execução na área sobre a Coordenação da SPM/RS e do Centro Estadual de Referencia da Mulher com reuniões semanais durante quase todo o 2014, para discutir as Politicas Públicas para as Mulheres, casos de violência contra as mulheres, os projetos levados pelas ONGs e Governo. A Rede encerrou o ano com um protocolo de fluxos de atendimento assinado e publicado, com vários projetos bem sucedidos e o reconhecimento público por parte de seus integrantes e do movimento de mulheres do RS.
Afirmo que passei do ponto da indignação, quando a li que a principal preocupação do Secretário nas Politicas para as Mulheres são os homens? A inovação do governo Sartori vai ser tratar os agressores pela Diretoria da Mulher? Acho que tem uma confusão básica aqui, muito comum em alguns operadores da área do Direito e que interpretam a ei Maria da Penha como uma Lei somente de violência doméstica, ou pior tratam violência contra as mulheres como sinônimo de violência doméstica.
Peço que não sejamos reducionistas, a violência contra a mulher pode ter seus maiores indices no recorte da violência doméstica, mas não se resume ao lar e ao casais. Não é a toa que a Lei trata de 5 tipos de violência e que uma das pautas mais atuais no movimento feminista são a violência psicológica e moral, por exemplo, o assedio virtual, trotes violentos e a desqualificação pública de alunas e militantes feministas que muitas vimos em denuncias recentes na UFRGS e na USP.
Companheiras feministas, vamos redobrar a vigilancia, porque em vista deste artigo fiquei com medo de perdermos os poucos equipamentos exclusivos para atender as mulheres que temos, como as casa abrigo, afinal são assistencialistas; como os Centros de Referencia em Atendimento para as Mulheres, afinal as mulheres tem de deixar de ser vitimas e precisamos tratar os homens também; como a Casa da Mulher Brasileira em Porto Alegre, afinal nós, as mulheres, precisam deixar de ser dependentes do Estado e um equipamento deste porte vai ser considerado gasto excessivo.
O 2015 começou com luta e precisamos aprofundar nossos conhecimentos e práticas para que discursos vazios não nos seduzam.
.oOo.

Maria do Carmo Bittencourt é militante da Marcha Mundial das Mulheres

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