terça-feira, 31 de agosto de 2021

O alerta da realidade do Afeganistão: o avanço do patriarcado capitalista no mundo

Shamsia Hassani retrata a força, os desejos e a dor das mulheres afegãs em grafites pelas ruas de Cabul e do mundo
Shamsia Hassani retrata a força, os desejos e a dor das mulheres afegãs
em grafites pelas ruas de Cabul e do mundo.


Denise Mantovani*
Cláudia Prates** 
Isabel Freitas***

Em agosto de 2021 o mundo voltou a olhar para o Afeganistão depois da retomada do poder em todo o país pelo Grupo islâmico Talebã e a fuga dos Estados Unidos, deixando à própria sorte milhões de pessoas, sobretudo mulheres e crianças. Um povo assolado por guerras perpetradas por Estados imperialistas desde 1979. Infelizmente, são as mulheres, crianças e idosos os principais alvos dessas violências de guerras, como os sequestros, os estupros, a escravização sexual, a fome, as doenças, o abandono, tortura e a morte. Em que pese as conquistas das mulheres afegãs nesses últimos anos na luta por mais direitos, das quais elas são as protagonistas, estamos vivenciando momentos terríveis, assombradas pela ameaça de aprofundamento dessas violências por governos de orientação misógina. Temos consciência dos limites dessa análise pelos filtros da luta ideológica hegemonizada pela versão do Norte global que afetam as informações que chegam até nós, apesar da internet, ainda que ela própria seja um meio controlado. Fazemos essa ressalva porque corremos o risco de olhar para um mundo do qual não conhecemos usando as ferramentas de análise que dispomos. Por mais que nosso ativismo feminista, antirracista e anticapitalista nos aproxime de um olhar crítico à dominação colonialista do Norte global sobre os países do Sul global, precisamos estar atentas para não reforçar estigmas e preconceitos ocidentais sobre as mulheres muçulmanas. Nossa luta é comum contra o discurso misógino, contra as interpretações sexistas e patriarcais das religiões contra nosso direito humano à igualdade, direito à educação, à sexualidade plena, a uma vida sem violências de nenhum tipo. Nossa aliança feminista é em favor dos direitos à autoafirmação dos povos e no interior dessas culturas, a luta contra as desigualdades e hierarquias naturalizadas. Nos unimos às nossas companheiras no mundo para desconstruir releituras misóginas e sexistas do sagrado para impor uma vida de subordinação e violências. Nossas lutas enfrentam visões colonialistas, racistas e machistas. Nossa solidariedade é sustentada no respeito e na consciência de que não detemos a palavra final, nem tampouco a verdade sobre o que acontece no Afeganistão. Estamos sujeitas a esses limites historicamente definidos por barreiras invisíveis construídas pela hegemonia da cultura etnocêntrica, masculina, branca e colonizadora do ocidente. Apesar do nosso ponto de partida estar nesse lugar ocidental, podemos e devemos nos associar ao combate e denúncia dessas violências provocadas por conflitos e guerras onde nossos corpos são os alvos, numa aliança com o patriarcado. 

Embora o patriarcado se expresse de forma muito articulada com sistemas de poder como o capitalismo, o colonialismo, o racismo ou as hierarquias religiosas, vemos ao longo da história da Humanidade que o patriarcado vai se adaptando às transformações sociais e políticas para manter como eixo de sustentação do poder a dominação e o controle dos corpos e da sexualidade feminina. São poderes e guerras controlados pela ideologia da supremacia dos homens sobre as mulheres. Essa realidade afeta as mulheres em todo o mundo. É possível dizer que na maior parte das sociedades contemporâneas os direitos de grupos são, de fato, antifeministas. E isso também envolve sociedades ocidentais, onde a naturalização das violências contra as mulheres se expressam nos ambientes públicos, na vida doméstica ou familiar.

A realidade de nossas irmãs afegãs expõe de forma brutal a realidade de direitos individuais que são retirados de todas nós em muitos lugares do mundo (ir e vir, estudar, trabalhar fora, ter seu próprio salário), assim como o direito de controlar sua sexualidade ou decidir sobre a vida reprodutiva (casamento, ter ou não filhos, custódia dos filhos, divórcio, aborto, salário ou patrimônio familiar). Como ideologia, o patriarcado define práticas culturais violentas sobre as mulheres ao longo da História. Esse sistema de poder, que tem mais de 5 mil anos, se manifesta na organização familiar, nas relações econômicas, nas instituições de poder, nas definição de leis (laicas ou religiosas), pelas burocracias religiosas, pela hierarquia, pela naturalização da subordinação. Ao longo da história humana, o patriarcado vem se transformando e se aliando a sistemas de poder político, econômico e religioso. Seja no caso dos estados teocráticos, seja no caso de democracias liberais e capitalistas, no ocidente.

No livro “A criação do patriarcado”, Gerda Lerner, explica que foi por volta do 3.000 antes da era Cristã que foram identificados os primeiros registros de vida em sociedade que se baseavam em conflitos e guerras, onde as mulheres dos povos derrotados eram estupradas, subjugadas e levadas como escravas sexuais, como troféu e marca da supremacia e poder dos vencedores. Os homens dos povos derrotados eram mortos. É nesse contexto histórico de imposição pela violência e pela força que o modelo da hierarquia masculina nasceu e foi sendo adaptado às várias formas de interpretar e definir a organização social ao longo de milhares de anos. A história de formação das sociedades no mundo é uma história contada por homens patriarcais em que a liberdade de uns é forjada na subjugação das mulheres, sobretudo pelo controle de seus corpos e de sua sexualidade. Por isso é importante perceber que o patriarcado não age sozinho. Está em aliança com sistemas produtivos baseados na exploração humana, como é o capitalismo e as guerras em nome dele. Com as hierarquias religiosas, em geral comandadas por homens, interpretações morais legitimam a subordinação e violência contra as mulheres. Para o patriarcado, a guerra sempre é um elemento fundamental de consolidação do sistema de poder. Mas não estamos generalizando, pois se trata de denunciar um tipo de masculinidade que se sustenta pela violência, pelo uso da força para exercer o poder, que naturaliza a hierarquia e a opressão, impondo suas vontades à força. O machismo que existe no mundo é a expressão desse tipo de ideologia que desrespeita as mulheres, suas vontades, seus desejos e o direito a uma vida autônoma. É o tipo de homem que se impõe pela força, pelas ameaças, pelas armas.

A realidade brutal enfrentada por nossas irmãs afegãs chama a atenção para o papel do patriarcado no mundo. O esfacelamento daquela sociedade coloca em evidência o “lugar” específico em que o patriarcado nos quer, seja na família ou na sociedade. A agenda antigênero, reacionária e misógina também vem assolando os países ocidentais patrocinados por grupos políticos racistas, neonazistas, autoritários, armados e militarizados com novos arranjos de poder sustentado pela extrema direita cristã espalhada pelo ocidente. A aliança internacionalista das mulheres é fundamental. Precisamos denunciar os retrocessos e as violências que ameaçam as conquistas fruto das lutas das mulheres afegãs, assim como a ameaça heteropatriarcal misógina, autoritária, capitalista e racista que ameaça as mulheres no mundo Ao contrário de uma versão colonialista, disseminada pelo mundo ocidental, as conquistas das mulheres afegãs não é resultado da bondade do poder invasor, mas do protagonismo e das lutas delas no contexto da realidade cultural e religiosa em que vivem.  

A questão religiosa é um ponto importante na aliança do patriarcado. Precisamos romper com um olhar ocidentalizado que desrespeita a realidade de lutas das feministas afegãs que seguem os preceitos do pensamento islâmico. Assim como as feministas cristãs (no Brasil), assim como as mulheres da matriz africana, as mulheres dos povos indígenas originários vem lutando para mostrar que o heteropatriarcado religioso tenta impor pela força uma ideia de sujeição e obediência, distorcendo visões do sagrado. Somos solidárias às lutas das feministas islâmicas que questionam visões tradicionalistas e hierárquicas e lutam pela revalorização da identidade das mulheres muçulmanas, numa dinâmica de lutas pela igualdade e respeito, contra visões essencialistas, estereotipadas, de subalternidade cultural e colonialista.

Nosso desafio é buscar esse diálogo respeitando nossas diferenças culturais lutando contra o patriarcado, o capitalismo e o racismo. Cremos que é possível estabelecer um diálogo respeitoso com as nossas irmãs afegãs porque não se trata de julgar ou discutir os preceitos relacionados à fé, à espiritualidade ou à relação das pessoas com a transcendência e as ancestralidades que organizam a diversidade e distintas visões de mundo. Mas de denunciar a forma como historicamente o patriarcado e as hierarquias religiosas vêm construindo arranjos de poder sustentados por interpretações dos acontecimentos sociais por homens que detém o poder. Apenas para situar um exemplo, o feminicídio no Brasil é mais elevado do que no Afeganistão. De acordo com dados do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH), os países que mais mataram mulheres no mundo em 2020 foram: El Salvador, Colômbia, Guatemala, Rússia e Brasil. Esse paralelo mostra que aqui no Brasil vemos homens (e mulheres também) onde defendem um conservadorismo religioso e patriarcal quer que achemos natural e que silenciemos diante de um cotidiano de violências físicas, morais ou econômicas. Por isso, quando abordamos a questão religiosa, não estamos falando da concepção do Sagrado como concepção de vida.

Precisamos nos unir para denunciar como e por quem as histórias dos povos vêm sendo contadas ao longo dos séculos e quais interesses de poder atendem. A aliança patriarcal, capitalista, religiosa e colonialista quer o controle sobre o corpo e a sexualidade das mulheres. No caso brasileiro, por exemplo, o racismo gerado por essa aliança coloca sob risco permanente a vida das mulheres negras, indígenas e migrantes pela exploração de seu trabalho, seus corpos, usurpação de seus territórios, pelos assassinatos diários de seus filhos e parentes, pelo desemprego, a fome e a miséria que o governo racista e misógino de Bolsonaro e seus aliados oligarcas no Congresso e no mercado financeiro estão impondo para a maioria da população brasileira, destruindo tudo, sem se importar com a vida das mulheres. 

Esse paralelo tem o objetivo de reforçar que nossas lutas são pelo direito universal à igualdade, pelo respeito e autonomia sobre nossos corpos, contra as opressões e desigualdades que atingem as mulheres em todo o mundo. A misoginia predominante nas interpretações patriarcais das religiões colocam as mulheres em perigo em todo o mundo. Estamos em solidariedade permanente com nossas companheiras feministas afegãs, sírias, palestinas, mulheres africanas, latinas, negras, indígenas, mulheres antirracistas, anticapitalistas, mulheres feministas que reivindicam o direito de manifestar suas identidades como mulheres onde a espiritualidade é parte constituinte do ser, sem que isso signifique se submeter a interpretações patriarcais, colonialistas e misóginas sobre a relação com o Sagrado. Nossa solidariedade deve ser uma relação de troca, de denúncia e acolhimento da forma que for possível. Reforçar as lutas e resistências que elas vêm empreendendo.

Não sabemos o que vai acontecer. A cada dia as informações são mais aterradoras pelo nível de violência e descontrole provocado por conflitos, bombardeios, atentados e guerras intermináveis. Nossa luta contra o patriarcado capitalista e misógino é internacional. Porque se trata de enfrentar o crime organizado, de comércio ilegal de armas, de drogas, de corpos humanos femininos escravizados no ocidente e oriente que ganham muito dinheiro no sistema financeiro mundial. As violências que estão acontecendo no Afeganistão afetam diretamente as mulheres e seus filhos, sustentam o sistema capitalista financeiro, em sua nova fase devastadora. A guerra e a destruição dos povos está nas entranhas de sustentação do capitalismo financeiro em seu momento atual. É o capitalismo que gera e se alimenta dessas guerras, que no fundo, são guerras contra as mulheres e sua memória ancestral.  Nossa luta é comum contra a exploração dos nossos corpos, contra o capitalismo e o heteropatriarcado. Por uma nova sociedade sem violências, de respeito entre mulheres e homens, de respeito às nossas diferentes culturas, compartilhando valores universais de paz e igualdade, estamos unidas com nossas irmãs afegãs.

Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres!

Resistimos para Viver, marchamos para transformar!

 

*Denise Mantovani é jornalista, doutora em Ciência Política, militante feminista da MMM RS

**Cláudia Prates - educadora popular, militante feminista da MMM RS, integrante da Aliança Feminismo Popular

***Isabel Freitas - assistente social especialista em saúde mental e coletiva, educadora popular, militante feminista da MMM RS




domingo, 1 de agosto de 2021

É também sobre bananeiras! de Isabel Freitas.

É também sobre bananeiras!


Hoje, 1 de agosto de 2021, foi dado mais um passo na desconstrução do pensamento e prática que a indústria da comida quer afirmar como caminho único para a humanidade. Foi também a semana em que os movimentos sociais do nosso continente ergueram-se para protestar, organizar e resistir à ofensiva do mercado em mandar na nossa comida.

A caminhada para construção da pequena e potente horta comunitária no Morro da Cruz, é a prova de que temos condições de apaixonar as pessoas, principalmente as mulheres, da nossa capacidade coletiva de plantar comida em toda parte.  Comida boa, limpa, produzida coletivamente. Pode ser que a produção da horta, não dê conta de forrar tantos estômagos quanto seja necessário. Estamos vivendo um momento duro de desemprego massivo e precarização dos serviços públicos, principalmente nos serviços de assistência social. Tão importante como a comida é o resgate das possibilidades de produzi-las em qualquer terra, já dizia Ana Primavesi “não existe terra morta, a terra é um organismo vivo, precisamos alimentá-la". Pra quem não sabe, Ana é uma mulher pioneira no pensamento e pratica agroecologia no Brasil. A mística da Horta é também um espaço de troca das militantes feministas, antirracistas e anticapitalistas, com as mulheres do morro. É uma energia poderosa movida pela esperança de dias melhores. Enquanto os poderosos do mundo se acantonam para pensar como dominar o mercado do alimento; como dominar totalmente a natureza; como dominar os povos, as sementes, as águas, como nos matar envenenados pela comida que eles fabricam, as mulheres sobem o morro para alumiar as possibilidades de redesenhar essa história.

Um dia, depois de uma exposição tensa sobre a ofensiva do capital sobre a vida das mulheres feita pela companheira Miriam Nobre, estudiosa do tema da agroecologia e do feminismo, eu perguntei a ela, qual alternativa que temos? Ela, calmamente respondeu: “em tempos de crise extrema a nossa melhor alternativa é acender nossas lanternas em cima das coisas boas que as mulheres sabem fazer, isso nos dá força”, concluiu a Miroca, como a chamamos carinhosamente.  Eu sempre penso nessa frase dela. Estamos num período em que as vezes nem enxergamos o túnel, quem dera a luz que deveria estar no seu final. Nossa horta ainda está engatinhando mas, nossa esperança galopa! Vieram muitas mulheres, muitas crianças. As mulheres logo pegaram na enxada e perceberam que a terra do morro era muito dura.

No entanto, a dureza não ensaiou desistência. Hoje plantamos bananeiras para filtrar um vazamento de esgoto. Diz a lenda que bananeira é uma planta feminina, ela produz um cacho apenas, depois não teria mais utilidade. Na base da bananeira nascem filhas que vão reproduzir netas e assim a vida da bananeira se reproduz contando a história da planta mãe.  Nos sistemas agroecológicos as plantas mães, alimentam a pobre terra pobre.  Hoje na horta comunitária a planta mãe também vai servir para filtrar o descaso do poder público com o esgoto onde brincam as crianças filhas dos mais pobres de cima do morro.

E nós seguimos ressignificando nossas práticas fazendo resistência e também plantando bananeiras!  

Isabel Freitas é Assistente Social especialista em saúde mental coletiva e educadora popular agricultora urbana, militante feminista da Marcha Mundial das Mulheres.