Essa semana, o portal de notícias especializado em questões de gênero, feminismo e direitos humanos, Portal Catarinas sofreu uma série de ataques massivos que causou instabilidade no servidor e fez com que recursos do sistema ficassem indisponíveis às usuárias e usuários.
Esse tipo de ataque por "bots" às iniciativas de jornalismo independente com foco em direitos humanos é frequente, conforme registrou a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI). Não por coincidência, os ataques começaram no dia em que o Portal Catarinas publicou a matéria "Bolsa estupro é a nova estratégia para institucionalizar a misoginia", denunciando mais uma investida contra os direitos das mulheres. O Portal restabeleceu seus serviços ontem, 02/04, após receber apoio de diversas iniciativas.
Nós, militantes feministas da Marcha Mundial das Mulheres, nos solidarizamos ao Portal Catarinas e viemos denunciar mais esse ataque às mulheres e à comunicação feminista e popular. A violência política, censura e silenciamento do jornalismo independente, produzido por mulheres e para mulheres, nos revolta e nos fere. Eles tentam nos derrubar, mas nós somos muitas e estamos juntas.
Para relembrar a importância e o envolvimento da MMM com a comunicação feminista e popular trazemos o texto das companheiras Helena Zelic e Patrícia Cornills, do Coletivo de Comunicadoras da MMM, para a coluna Sempreviva do jornal Brasil de Fato.
Comunicação popular contra desinformação e vigilância.
Por Helena Zelic e Patricia Cornils para o Brasil de Fato*
7 de julho de 2020.
Durante esse período de pandemia, em que o isolamento social é uma medida necessária (apesar dos obstáculos impostos por Bolsonaro e seus aliados empresários), a internet aparece como uma solução guarda-chuva para todos os problemas. Mas, a partir dos acúmulos feministas e anticapitalistas sobre comunicação e as tecnologias digitais, colocamos aqui a pergunta: como garantimos nossa comunicação ampla, popular e antissistêmica em uma internet dominada por grandes proprietários?
A cada dia, uma parte maior do que fazemos envolve um computador – e nossos celulares hoje são quase computadores. Aulas, reuniões, acesso à cultura, uma infinidade de aplicativos de serviços (que só oferecem entregas por preços menores porque precarizam muito o trabalho de seus trabalhadores e trabalhadoras).
Contra os proprietários dos dados
Imagine o volume de informações necessárias para que tudo isso funcione da forma como funciona hoje. Desde as coisas mais “públicas”, como as lives e as notícias, até as que parecem ser mais “privadas”, como as reuniões virtuais, as aulas dadas de forma remota, as pesquisas que as e os cientistas fazem, os dados do auxílio emergencial — tudo isso está em algum computador, em algum lugar. Inclusive, aquilo que a rede apelidou de “nuvem” é, na verdade, uma quantidade de grandes computadores, que chamamos de servidores.
Cerca de 80% dos dados recolhidos, armazenados e analisados em todo o mundo estão em servidores de cinco grandes empresas: Microsoft, Apple, Alphabet (Google, Youtube), Amazon e Facebook (Instagram e Whatsapp). Nós “consentimos” com seus termos de uso sem ler suas letras minúsculas, e, a partir desta brecha (e de outras que não chegaram nem a ser escritas nos termos), nossos dados são vendidos para outras empresas, que nos oferecem uma propaganda “direcionada” – às vezes sobre o novo tênis de uma grande marca, às vezes sobre o novo candidato político de extrema-direita…
Contra os proprietários da comunicação
Por causa da digitalização de tantos aspectos de nossas vidas, a comunicação e a coleta de dados já não são mais coisas separadas. E nunca foram tão imbricadas com a política. Um exemplo disso foi o uso de dados de centenas de milhares de pessoas no Facebook, sem que elas soubessem, por uma empresa chamada Cambridge Analytica, que prestou serviços para a campanha de Donald Trump.
A Cambridge Analytica fechou, mas um de seus fundadores, Steve Bannon, é próximo da família Bolsonaro e trabalha para organizar forças reacionárias e apoiar regimes de extrema direita em vários países. Este método de uso de dados para conquistar e manter governos, muitas vezes com campanhas repletas de mentiras, discursos de ódio e desinformação, segue em uso. Um dos segredos para o funcionamento dessas mensagens é adequá-las a cada público e, para isso, os dados (seu processamento e análise) são fundamentais. Por isso, as empresas estão o tempo todo encontrando maneiras para ter acesso a mais dados sobre cada pessoa. E com nenhuma transparência sobre como e quando fazem isso.
No Brasil, a campanha de Bolsonaro usou redes digitais para ganhar votos e, até hoje, usa este tipo de comunicação para manter seus apoiadores ativos. É só perguntar aos seus conhecidos ou parentes que ainda apoiam o presidente qual é o tema da semana e você vai ouvir barbaridades sobre a pandemia de coronavírus, ataques à democracia no Brasil, ataques contra as ideias e as pessoas que Bolsonaro denomina como “inimigos”. Essa rede não se limita a grupos de WhatsApp, é composta por sites e perfis no Youtube, no Instagram, no Twitter e também por perfis oficiais de parlamentares ligados a Bolsonaro e à própria Secretaria de Comunicação do governo federal, que já usou o Twitter para fazer ataques a pessoas da oposição.
Quando a coleta de dados é feita com a colaboração de governos — aos quais cedemos muitas informações para ter acesso a direitos (como, agora, à renda emergencial) — é ainda mais grave. Um exemplo: a IP.TV, empresa contratada para fornecer plataformas de aulas online para 7,1 milhões de alunos das escolas públicas de São Paulo, Paraná, Amazonas e Pará, tinha antes desses contratos apenas um produto de sucesso: O Mano, aplicativo de streaming de vídeos criado em 2018 para a campanha de Jair Bolsonaro. Qual a garantia de que os dados de milhões de estudantes não serão usados em campanhas políticas de desinformação? No caso da pandemia de covid-19, essas coisas todas se encontram. A desinformação difundida por Bolsonaro e seus aliados é parte de sua política que prioriza os lucros dos empresários em detrimento da vida.
E projetos de lei usam a visibilidade do tema “fake news” para, em vez de aumentar o controle da sociedade sobre quem produz e distribui desinformação, ampliar a vigilância sobre as pessoas comuns. Este é o caso do PL 2630, neste momento na pauta do Senado Federal, sem nenhuma discussão ampla da sociedade. Outra “boiada”, que não pode passar assim.
Mas não é só de internet que se faz a comunicação, inclusive porque muita gente (25% nas cidades e 48% nas zonas rurais) no Brasil ainda não tem internet em casa; e dentre as pessoas que têm, muitas possuem acesso limitado pelos pacotes de internet móvel, que são caros, têm pouca banda e, muitas vezes, restringem o tráfego apenas ao WhatsApp e ao Facebook. A televisão e o rádio ainda são meios de comunicação que fazem parte do cotidiano de enorme parte da população, e são controlados por meia dúzia de famílias.
Entre as rádios e tevês mais conservadoras e as que aparentam ser mais “progressistas” (de acordo com o momento), há em comum uma narrativa reacionária, que oculta a organização popular e prioriza a voz das elites. A Globo, que hoje se afasta de Bolsonaro (porque tenta alavancar uma outra direita), teve muita responsabilidade pelo golpe contra Dilma Rousseff e pela perseguição de Sérgio Moro e da Lava Jato contra Lula.
Quando os movimentos sociais aparecem na mídia, é como baderna, em um flash de poucos segundos, ou ainda como um problema no trânsito ou na “economia”. Quando algo próximo ao feminismo aparece, há duas vias possíveis: ou é para ser maldito por conservadores, ou é banalizado em sua forma mais liberal, e centrado em uma pessoa só, geralmente desvinculada de processos coletivos e populares.
Comunicação popular pela vida em movimento
Por tudo isso e muito mais, é preciso fortalecer as iniciativas e experiências de comunicação popular. Puxados pelos movimentos sociais, por redes e coletivos muitas vezes territorializados, esses meios de comunicação alternativos e militantes visibilizam as alternativas para a sustentabilidade da vida e propõem outra forma de fazer: não hierarquizada, que não fica em cima do muro, com um olhar ativo, participante, coletivo. Isso não foi inventado agora, com a expansão da internet. Há várias décadas já existiam (e ainda existem!) as rádios comunitárias e os jornais populares, muitas vezes com um alcance maior, inclusive, do que o que conseguimos brigando com os algoritmos das grandes empresas de rede social.
Especialmente agora, em que atravessamos uma luta coletiva pela vida, é preciso que a comunicação esteja alinhada com (e seja feita por) as vozes plurais e políticas de quem está na linha de frente do combate ao coronavírus (e sabemos que essas vozes são, principalmente, das mulheres), organizando a solidariedade em cada bairro, lutando pelos direitos trabalhistas, que hoje equivalem ao direito à vida para muitas categorias precarizadas pelo avanço do neoliberalismo, pressionando pelo direito aos dados reais da pandemia no Brasil.
Se a natureza é um bem comum, se a água, a terra e os conhecimentos são comuns, então devemos entender a comunicação e a internet como comuns. Isso colabora em nossa luta por tecnologias realmente livres e por códigos abertos. E permite que façamos uma comunicação que vá na contramão do modelo hegemônico atual, tanto pela sua forma de fazer, quanto pelo horizonte radical de igualdade para onde ela aponta.
Para mais informações, acesse os links:
https://www.abraji.org.br/noticias/portal-catarinas-sofre-ataques-massivos-e-fica-fora-do-ar?fbclid=IwAR1VZc-cXEP_Ltmy9C3esExEUzJK__g4Baog5hOOe1t-DizX6yyYp5qhTj0
https://www.facebook.com/portalcatarinas/photos/a.883333758449015/3782347705214258/
https://catarinas.info/bolsa-estupro-e-a-nova-estrategia-para-institucionalizar-a-misoginia/
https://marchamulheres.wordpress.com/coletivo-de-comunicadoras-da-mmm/
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