segunda-feira, 4 de novembro de 2013

O mercado mandou avisar: “aqui de cima tá tranquilasso, obrigado”

Por: Bruna Provazi *

As bolhas da internet às vezes causam essa sensação de que estamos avançando no combate ao machismo, ao patriarcado e coisa e tal… Uma breve olhada pro horizonte à frente, pra história atrás e pra vida de todas as mulheres à nossa volta, entretanto, mostram um cenário um pouquinho diferente…
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A camiseta em questão…
Nas últimas semanas, gerou polêmica na rede uma foto da top model Izabel Goulart publicada em seu Instagram e reproduzida pela Marie Claire com o seguinte título:“Izabel Goulart se despede do Rio de Janeiro e exibe corpo perfeito”. Eu só tomei conhecimento de tal foto depois que começaram a pipocar na minha timeline do Facebook diversas críticas à abordagem da revista. Mesmíssima coisa aconteceu com a polêmica em torno da camiseta da American Apparel cuja estampa traz uma vagina peluda e menstruada sendo masturbada, e a qual Julia Petit tratou logo de chochar em seu site, com o mais simplório argumento do “nojinho”. De maneira semelhante, somente tomei conhecimento do assunto depois que vi uma enxurrada de gente viralizando umpost pró-bucetas, crítico à crítica da Julia – sobre quem, diga-se de passagem, tive que dar uma googleada básica antes de escrever este texto. Também não sabe? Tudo bem, tá aqui. Não conto pra ninguém ;)
Fato é que após a retaliação em massa nas redes sociais – inclusive pela própria Julia Petit, vejam vocês! -, a Marie Claire tratou de reescrever a notícia(?), trocando o título para “Izabel Goulart se despede do Rio de Janeiro e fãs elogiam: ‘corpo perfeito’”, e acrescentando um mea culpa picareta:

“UPDATE:
 Após a publicação desta nota, acompanhamos a reação das leitoras nos comentários e nas redes sociais e, de fato, reconhecemos que muitas delas (vocês) tinham razão. O texto não estava de acordo com a linha editorial de Marie Claire, que é a favor da diversidade e de um padrão de beleza saudável. Por isso fizemos ajustes e pedimos desculpas. Estamos em contato com os representantes de Izabel Goulart para que ela também responda aos comentários das leitoras de Marie Claire”.

“Uau! O poder das redes sociais! A Marie Claire reconheceu o absurdo da nota!”
. Tudo isso seria lindo, se a gente não se deparasse com esse mesmo padrão de beleza e de feminilidade permeando todas as capas e matérias da revista. Essa suposta linha editorial, se realmente existe, é explicitamente desobedecida em todas as páginas da publicação. Obviamente, não se trata aqui de uma revista X, Y ou Z, mas de uma verdadeira hegemonia do mercado editorial que dita regras e modelos de comportamento para todas as mulheres. E a regra é clara, bem clara, magra, alta, loira, ruiva ou morena – a depender da tonalidade escolhida do Wellaton.
Novas e Cláudias já faziam isso há décadas, ensinando truques e artimanhas pra “segurar seu marido” preparando um bom jantar, escutando seu papinho atenciosamente e estando sempre disponível pro sexo. As revistas femininas ajudaram a formar gerações de boas mães e boas donas-de-casa. Mas nenhum meio de comunicação, por mais “endemoninhado” que seja, é capaz de criar sozinho padrões de comportamento. Se nada disso é novidade, se é quase senso comum feminista dizer que nós não somos essas garotas da capa, por que continua sendo lucrativo para essas empresas publicar tal conteúdo? Por que as mulheres continuam comprando receitas mágicas para a felicidade inatingível, em plenos anos 2000 e um tantão?
Há que se considerar que a sexualidade é um terreno arenoso, e o capitalismo trabalha nos poros de nossa subjetividade, não discriminando ninguém que tenha poder aquisitivo suficiente para ser incorporada em um novo nicho mercadológico. De fato, o mercado parece cuspir na nossa cara quando nos oferece a cerveja da mulher negra (e não “para a mulher negra”, até porque o mercado nem mesmo enxergou ainda que mulher bebe cerveja…), a grife das mulheres gordinhas e o sabonete das “mulheres reais”.
Seria ingenuamente lindo acreditar que a publicidade está, finalmente, nos percebendo e nos retratando em toda a nossa diversidade, não soubéssemos que ela própria faz parte da engrenagem de um sistema estruturado com base em estereótipos de gênero e padrões de beleza segregadores. O que vemos é uma renovação supostamente democrática do mercado como consequência do esgotamento de um único modelo de consumidores(as).
Quantos bilhões deixarão de lucrar as empresas de cosméticos, por ano, se estivermos perfeitamente satisfeitas com nossos corpos? Quantos bilhões de remédios a indústria farmacêutica deixará de vender, por ano, se estivermos plenamente felizes com nossas vidas e com o que somos? É impossível pensar que existe um avanço no mercado, quando é ele o principal beneficiário de nossa opressão.
Segundo pesquisa da Fundação Perseu Abramo (2013), 43% das pessoas entrevistadas disse não se reconhecer na programação da televisão, e 25% se veem retratadas negativamente. De maneira análoga, o Data Popular e o Instituto Patrícia Galvão divulgaram no mês passado uma pesquisa em que 65% das(os) entrevistadas(os) consideram que o padrão de beleza mostrado nas propagandas é distante da realidade da população, e 60% consideram que as mulheres ficam frustradas por não conseguirem ter o corpo e a beleza das personagens mostradas nos comerciais.
O Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking de cirurgias plásticas do mundo, ultrapassando até os Estados Unidos. Entre 2009 e 2012, o número de cirurgias no país cresceu 120%. Só no ano passado, foram 1,5 bilhão. Dessas, sete em cada dez são estéticas: lipoaspiração, rosto e redução ou implante de silicone nas mamas são as mais procuradas. Dados da Perseu Abramo (2010) também demonstram que apenas 50% das mulheres está plenamente satisfeita com sua aparência física, enquanto 70% dos homens estão satisfeitos. Entre essa quase metade das mulheres insatisfeitas com sua aparência, 15% estão descontentes com sua barriga, 14% acham que estão acima do peso e 7% não gostam de seus seios.
Karma feminista, ou: não tá fáceo nem comer um PF sem nóia mais... #indigestão
Karma feminista, ou: não tá fáceo nem comer um PF sem nóia mais… #indigestão Foto: Bruna Provazi.
A primeira conclusão a que podemos chegar é que, embora pareça estar aumentando a consciência da população acerca da publicidade e dos conteúdos veiculados nos meios de comunicação, por outro lado, ainda que as pessoas tenham algum grau de conscientização, é extremamente difícil passar imune aos mil tentáculos que nos agarram no dia-a-dia, traçando as linhas invisíveis do que devemos ou não usar e de como precisamos ser.
Em segundo lugar, o mercado mandou avisar que vai muito bem, obrigado. A mudança de tom da Marie Claire não gerou uma transformação geral na linha editorial da revista, apenas foi a brecha dada por ela a parte de suas consumidoras em potencial. Se as empresas continuam a investir nesse modelo branco, hétero, cis, loiro, magro, certamente é porque seu balanço anual continua fechando direitinho.
Se no conforto dos nossos filtros-bolha tudo vai bem, no canto direito da página provavelmente tem uma propaganda da L’Oreal, da Vogue ou uma “dieta saudável” pra nos lembrar que pra indústria da beleza tá tudo tranquilasso também… Cabe a nós furamos essas bolhas, coisa que a gente sabe que não vai rolar só pela internet, nem tampouco com meia dúzia de “esclarecidas”. E é por isso que investimos todas as nossas forças na organização das mulheres, de forma coletiva, autônoma e permanente. Contra a “repaginada” do mercado, vida longa ao feminismo popular!

* Bruna Provazi é militante da Marcha Mundial das Mulheres de São Paulo e organiza o Festival Mulheres no Volante.

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