terça-feira, 1 de setembro de 2015

Liberdades Religiosas e Liberdades Sexuais e Reprodutivas em um Estado Laico


Ana Naiara Malavolta
(Ativista Lésbica Feminista – Articuladora Estadual da Liga Brasileira de Lésbicas e representante da LBL-RS no Fórum Gaúcho em Defesa das Liberdades Laicas)


“Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos, jovens amigos, não é verdade?” - Rosa Luxemburgo


O conceito de liberdades laicas e os limites entre liberdades religiosas x liberdades sexuais e reprodutivas em um estado laico tem sido, modernamente, tema de debates recorrentes no Brasil, em especial no RS após a decisão histórica de retirada dos símbolos religiosos dos Tribunais Gaúchos, consequência da provocação feita em novembro de 2011[i] por um grupo de entidades dos movimentos feminista e LGBTT (Liga Brasileira de Lésbicas - LBL-RS, Somos, Nuances, Rede Feminista de Saúde, Themis e Marcha Mundial das Mulheres), que teve grande repercussão nacional e reascendeu o antigo debate sobre separação entre religião e Estado.
No entanto, nunca é demais lembrarmos que a discussão sobre separação entre Estado e Igreja (laicidade e secularismo)[1],  é mais velha que o próprio Brasil e que veio para terras tupiniquins junto com as caravelas, embaladas pelas ondas do mar, mas muito bem escondidas pelos mantos do padroado católico, onde o Estado escolhia os cargos religiosos e os pagava, como se fossem cargos públicos, enquanto a igreja batizava pessoas (uma substituição, à época, do registro civil) e as reunia em congregações nas quais realizava tarefas que deveriam ser do Estado, dando origem às cidades. Era uma relação de dependência e mútua aliança promíscua, que favorecia a ambos os lados: Estado e Igreja. Isto aconteceu em plena época da “santa” inquisição medieval, em que a igreja católica exercia poder de polícia e decisão de Tribunal no lugar do Estado em vários países, inclusive no Brasil, sendo responsável, naquele momento, pela prisão de milhares e pela execução de centenas de pessoas no mundo [ii].
Também não é demais lembrarmos que passamos por trezentos e noventa e um (391) anos de Estado Confessional (de confissão católica) antes de alçarmos voo para a conquista da separação entre Estado e Religião, o que só ocorreu com a promulgação da Constituição Republicana de 1891, portanto há recentes cento e vinte e dois (122) anos.
Remontando a esta época e até os dias de hoje, de um lado estão aqueles que, como nós, defendem o Estado Laico como única forma de, através da autonomia do estado em relação a crenças e dogmas religiosos, mediar conflitos resultantes dos diversos pontos de vista religiosos e científicos que surgem sempre que tabus – como as liberdades sexuais e reprodutivas – são debatidos.
Do outro lado os fundamentalistas religiosos, seus dogmas, suas crenças e doutrinas, tentando impor a toda a sociedade seus princípios e sua moral religiosa de forma absoluta e inquestionável.
No centro deste debate o conceito fundamental de LIBERDADE, sem o qual não existe saída, não existe compreensão dos limites entre a verdade de uns e a verdade de outros.
Mas o que são fundamentalismos? E o que separa um religioso comum de um religioso fundamentalista?
Os fundamentos são a base, os alicerces, as fundações de qualquer coisa que se pretenda sólida [2] (Dicionário de Português). Assim, os fundamentos religiosos são as bases nas quais uma religião  se apoia.
Segundo Marta Zechmeister [iii], do Departamento de Teologia da Universidade Centro Americana (UCA) o conceito de fundamentalismo nasce no final do século 19, em um contexto Cristão, como forma de voltar - de maneira literal - aos fundamentos da bíblia, ameaçados, naquele momento, pela ciência, em especial pelas teorias evolucionistas[3] de Darwin (que se contrapunham ao creacionismo[4] bíblico) e pela interpretação livre dos textos sagrados, baseados em métodos científicos e históricos.
A autora cita que em 1910 um grupo protestante conservador dos Estados Unidos publicou um documento de testemunho, um manifesto, chamado “Os Fundamentos” que se transformou em uma aceitação literal das doutrinas cristãs, dentre elas a concepção virginal de Cristo, sua ressurreição corporal, mas em especial a inspiração divina de cada palavra escrita na Bíblia.
O Padre Deam Brackley, também do Departamento de Teologia da UCA, conceitua fundamentalistas como sendo “grupos de pessoas que só se apegam a dogmas, a doutrinas, sobretudo religiosas, que vêm diretamente de Deus, através da Bíblia e que não se deixam questionar por outras doutrinas”[iv].
Livremente poderíamos definir fundamentalismos religiosos como sendo a reação autoritária, sectária, muitas vezes violenta de grupos religiosos a avanços de concepção que contrariem ou se desviem, ainda que minimamente, da leitura que fazem seus líderes dos textos bíblicos. Digo seus líderes já que em boa parte das religiões a interpretação bíblica é feita por estudioso das escrituras sagradas, cabendo aos fiéis seguirem aquilo que é ensinado, doutrinariamente, como religiosamente correto. Aqui cabe ressaltar que existem várias versões da Bíblia e que os termos que são utilizados para a pregação contra a homossexualidade, por exemplo, foram adaptados ao longo dos anos, gerando “traduções” nada literais das passagens bíblicas[v].
Ainda segundo Zechmeister todo e qualquer avanço é visto pelos fundamentalistas como ameaça que exige reação proporcional ao perigo que, sob sua ótica, representa e, em nome de Deus – e do que imaginam que ele tenha transmitido através das palavras bíblicas – constróem o raciocínio que leva à reação, sem a qual não estariam cumprindo seu dever na terra.
Assim, se o evolucionismo contraria as escrituras bíblicas, necessário provar que ele está errado. Se as práticas sexuais são consideradas contrárias à doutrina, porque moralmente erradas, elas devem ser rechaçadas, “porque um erro moral, nunca pode ser um direito civil” (Silas Malafaia, sermão dominical publicado na internet)[vi].
A partir deste pensar fundamentalista, expresso na citação acima, manifesta-se hoje no Brasil a prática fundamentalista citada em nossos debates, durante o seminário que deu origem a esta publicação. Prática que pode ser vista nas igrejas, mas não apenas nas igrejas, como também nos parlamentos, no Judiciário e em várias áreas do executivo de todos os níveis e muitas vezes em espaços públicos, transformados, de forma equivocada, em templo de pregação, numa completa confusão entre liberdades laicas e abuso de liberdade religiosa.
Quando propusemos a retirada dos símbolos religiosos no RS (lembrando que dos quatro processos encaminhados apenas o processo do Judiciário teve andamento, enquanto os processos da Câmara de Vereadores de Porto Alegre, da Assembleia Legislativa e do Executivo do RS continuam dormindo em berço esplêndido) uma das frases que mais ouvimos foi: se há um símbolo religioso nos órgão públicos, então TODOS os símbolos de todas as religiões deveriam ser tolerados.
Esta é uma confusão que o próprio movimento pelas liberdades laicas costuma fazer. O princípio constitucional - na verdade a NORMA Constitucional - que preconiza a separação entre Estado e religião garante expressamente que o Estado não deve se associar a religiões, não deve favorecer ou obstruir o seu exercício, mantendo-se neutro nos assuntos de fé.
Isso, de forma nenhum, significa fatiar o tempo ou o espaço público para uso de todas as religiões convertendo o Estado constitucionalmente laico em Estado, na prática, multi teocrático ou pluri confessional. Fazer isso seria sobrepor o direito religioso a todas as demais instâncias do direito, como se este, por ser exercício de fé, gozasse de privilégio concedido por Deus devendo, por isso só, ser aceito por toda a sociedade.
Os espaços de pregação podem ser públicos (como o são os templos, igrejas, terreiros e assembleias), mas as praças são espaços públicos de convivência e lazer, assim como as ruas, as avenidas, os corredores de repartições públicas, os meios de transporte coletivo e as escolas. Estes não podem, sob pena de extrapolação do direito religioso, ser transformados em espaço de pregação, de onde deva se retirar aquele que não quer ouvir a pregação que está sendo feita, por ferir seus princípios de fé ou seu direito de não ter fé.
Esta lógica – de que a liberdade religiosa me permite pregar sobre religião em qualquer espaço - subverte, por si só, a lógica de todas as demais liberdades, submetendo-as à liberdade religiosa, ou liberdade de culto e, desta forma, favorecendo a religião em detrimento do direito de não ter religião – também garantido pela liberdade religiosa em um estado verdadeiramente laico.
As liberdades laicas, fundamentos de democracia num estado democrático de direito, possibilitam a livre manifestação do pensamento religioso e a preservação dos espaços e templos religiosos. Disso não temos dúvida e concordamos, inclusive por princípio. Isso significa que uma pessoa que não tenha fé, ou que se oriente por uma corrente de fé diferente da de outra pessoa ou grupo, não pode invadir o espaço religioso de terceiro para questionar, debater ou impedir que o exercício religioso aconteça, quebrando, por exemplo, símbolos religiosos, por entender que eles ofendem a sua fé. A preservação dos espaços e templos religiosos é uma forma de garantir que a sua liberdade não será violada, ao mesmo tempo em que não violará a liberdade de outras pessoas, que, porventura, em função de crença de ordem igualmente religiosa, discorde das práticas ou sincretismos adotados pela sua religião.
No entanto, até onde vai esta possibilidade de “livre manifestação do pensamento religioso” dentro destes espaços e templos? Quais os limites da liberdade da expressão religiosa, diante de outra liberdade inatacável pelo mesmo princípio das liberdades laicas: a liberdade sexual e, mais profundamente, os direitos civis de mulheres, de negros e negras ou de homossexuais? Podem os pastores ou líderes de congregações evangélicas pregarem a morte a homossexuais, livre e impunemente, se isso for feito dentro de um templo? Podem associar as práticas homossexuais ao demônio, exigindo que os fiéis (no caso pais, irmãos, tios e tias) reajam a estas práticas - muitas vezes com incitação à violência física - dentro de seus lares se estas propostas forem feitas durante uma missa ou um sermão? Podem incitar o ódio, a perseguição, o escracho público pregando em praças e avenidas das cidades? Podem violar direitos humanos, impedindo, por exemplo, a presença de homossexuais em missas ou templos?
E se uma pregação é feita em praça pública, esta liberdade de livre expressão da fé pressupõe o direito de agredir quem dela discorde publicamente? As ruas, avenidas e ônibus de transporte municipal, podem ser ocupados por pregadores e os não crentes devem se calar diante das manifestações de intolerância ou de certezas baseadas em fundamentos bíblicos?
Da mesma forma a imunidade parlamentar – que defendemos, como defendemos as liberdades laicas - imuniza Vereadoras (es), Deputadas (os) e Senadoras (es) quando se manifestam de forma pública e intolerante dentro dos Parlamentos acerca de temas como direitos civis de homossexuais ou sobre o aborto, usando como justificativa sua fé religiosa? Ou quando ofendem, caluniam, difamam e atacam líderes de movimentos por direitos civis de homossexuais ou de mulheres, ou quando, usando de artimanhas ou prerrogativas regimentais, no uso de funções públicas, deixam de tratar de temas que são do interesse destes segmentos sociais?
É isso que se supõe que as liberdades laicas garantam ao falarmos de liberdades religiosas?
Certamente que a resposta para estes questionamentos é NÃO! Isso é extrapolar os limites da liberdade reivindicada.
O fundamentalista religioso utiliza-se retoricamente do direito à liberdade religiosa para, em nome da laicidade do estado, atacar, caluniar, difamar e, tendo poderes, impedir o avanço da legislação que torne possível o pleno exercício civil da liberdade sexual e da liberdade reprodutiva, no caso das mulheres. Pior: utiliza-se de um discurso laico para uma prática confessional que busca, em última análise, a construção de um estado cada vez mais teocrático, cada vez mais fechado naquilo que consideram como verdade, como princípio, como fundamento de sua religião e é justamente aqui que um religioso comum se separa de um religioso fundamentalista.
Senão, como justificar a presença não apenas dos símbolos religiosos, mas de bíblias em sessões legislativas, em cerimônias públicas, em capelas de prédios executivos, em hotéis, em escolas, não apenas no ensino religioso, mas em muitos casos em leitura bíblicas obrigatória no início ou final dos turnos escolares?
Como explicar a organização em bancadas religiosas no Congresso Nacional e sua ação articulada no sentido não apenas de impedir avanços legislativos, mas na promoção de retrocessos gritantes de direitos e garantias civis de gays, lésbicas, bissexuais, travestis e transexuais?
As práticas fundamentalistas estão fixadas na certeza que têm seus praticantes de que sua reação é esperada por Deus. De que sua missão é a erradicação dos infiéis, a eliminação dos pecados por eles cometidos contra a Palavra de Deus (o fundamento) e no ensinamento como única forma de redenção, motivo pelo qual a educação está no centro da disputa para aqueles que buscam a imposição de suas crenças.
Os exemplos de para onde isso pode nos levar são fartos e variados na história antiga e na história recente e não são proporcionados apenas pelos países do oriente médio, como muitos supõem. Suas manifestações são recorrentes no ocidente e na América Latina, na Ásia e na Europa, nos Estados Unidos e na África e estão disponíveis em grande e extremado número.
A ação dos fundamentalistas cristãos no Congresso Nacional, orquestrada estrategicamente a partir da influência de igrejas radicais americanas que, inclusive, financiam ações nas Américas e na África, em países como Uganda, onde pentecostais americanos patrocinam, há vários anos, a disputa legislativa que visa estabelecer lei para punir com a morte os homossexuais daquele país, representa hoje uma ameaça concreta de cruzada moderna, de nova inquisição, com proporções iguais as da idade média. E não se trata de ação espontânea ou ingênua. É uma ação orquestrada, muitas vezes ensinada em congressos e encontros internacionais, das quais Brasileiros têm participado em número e com frequência cada vez maior.
Da mesma forma a pregação do papa católico, falando em “descarte de vidas” ao tratar do aborto, ou convocando as mulheres estupradas para que, inspiradas pela palavra de Deus (a Bíblia), perdoem os estupradores e continuem com a gravidez é um exemplo tão extremo de fundamentalismo quanto o ataque às torres gêmeas pelos muçulmanos, que deixou o mundo perplexo em 2011.
Assim, também, a lógica seguida pelos neo-pentecostais brasileiros da patologização comportamental (do vício ou do costume) das práticas de relações não heterossexuais ou a demonização das mulheres, responsabilizadas pela diminuição de papéis sociais tradicionais para homens e mulheres dentro da família, que conduz à retórica doutrinária que tenta aprovar a nível nacional leis absolutamente contrárias aos direitos humanos constante tanto da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (França, 1789, grifo nosso), como da Declaração Universal dos Direitos Humanos (Nações Unidas, 1948), quanto da Constituição Federal e de diversos tratados internacionais de Direitos Humanos dos quais o Brasil é signatário.
Absurdos jurídicos que vão do estatuto do nascituro (PL 478/07) que pretende dar direitos a um embrião, retirando direitos da mãe sobre seu próprio corpo e vinculando o estuprador à criança e à mulher estuprada, da cura gay (PDC 234/11, retirado pelo autor, mas com promessa de voltar à pauta em 2015) que objetiva modificar recomendação de entidade de classe, submetendo a ciência através de legislação dogmática, passando por legislações municipais de obrigatoriedade da leitura bíblica ao reconhecimento do “senhor Jesus como soberano do Município, do Estado e da Nação”[5].
Kathleen Taylor [vii] – neurocientista americana, baseada em pesquisa feita em 2012, disse em junho de 2013, que existe a possibilidade de que, em futuro próximo, o fundamentalismo religioso possa ser tratado como doença, já que provado uma disfunção do cortex prefrontal medial dos fanáticos religiosos. Esta é a área do cérebro, segundo a cientista, responsável por nos fazer duvidar de alguma informação recebida. Ainda  segundo a especialista, isso justificaria o fato de que estas pessoas são incapazes de questionar criticamente a informação que recebem, tornando suas crenças verdades absolutas.
Independentemente de toda esta polêmica e de estudos eugenistas sobre a origem da homossexualidade ou do fanatismo pela religião, precisamos estabelecer nitidamente que nosso debate em torno do Estado Laico não é um debate religioso, ainda que, em muitos momentos, forçado pela ações e discursos fanatizados, a religião esteja no centro deste debate. O debate é político e disputa politicamente um espaço para a hegemonia da moral coletiva na atualidade.
Não podemos permitir que a religião seja motivo para adiarmos debates de fundo no Brasil, como as questões da legalização do aborto, do uso de células tronco ou embrionárias nas pesquisas científicas, do estudo do genoma humano, dos direitos civis para homossexuais, das cirurgias de mudança de sexo para transexuais, da educação sexual e para a diversidade nas escolas e tantos outros temas que são relevantes e acabam, por interferência religiosa, se tornando tabus intransponíveis.
Na verdade as liberdades religiosas estão absorvidas na defesa das liberdades laicas, são parte de sua essência, mas não são, ao contrário do que querem fazer crer alguns, distorcendo sua conceituação, imunes ou isentas de responsabilidade ou de limites.
Como toda a liberdade ela finda quando ultrapassa a liberdade de outras pessoas. A liberdade nos garante o direito de, dentro dos limites da lei, agir de acordo com nossa própria determinação, desde que isso não prejudique outras pessoas, tencionando, como é próprio do ciclo evolutivo, as leis quando estas nos prendem ao passado, como foi o caso do voto igualitário para homens e mulheres, das garantias civis para negros e negras e agora da legislação civil para homossexuais.
Segundo Kant[viii], liberdade está relacionado com autonomia, é o direito do indivíduo fazer tudo aquilo que a lei não proíbe. Essa liberdade só ocorre realmente, através do conhecimento das leis morais e não apenas pela própria vontade da pessoa.
Aqui, na análise dos conceitos de liberdade e moral, reside de fato todo o problema a ser equacionado pela sociedade, através do Estado juridicamente organizado, nos conflitos de origem moral que advém dos pensamentos filosóficos, culturais e religiosos e que necessariamente, além de permanentemente conflituosos, são reconstruídos (revistos, revisados) de tempos em tempos. É aqui que a disputa realmente ocorre.
Para equacionar este problema e nos colocarmos de um dos lados desta balança – que pende para um lado ou para outro dependendo do momento político que vivemos - precisamos fazer – e responder - a alguns questionamentos: A homossexualidade é um mal social? Existe prejuízo de terceiros quando dois homens ou duas mulheres ou um homem e uma mulher se relacionam afetiva e sexualmente? O Estado deve, por força de lei, regular as relações afetivas e sexuais entre pessoas adultas, capazes e independentes, ou isso deve ser apenas fruto da reflexão autônoma de cada pessoas que, exercendo sua capacidade de decisão e movida por sua liberdade, escolhe os caminhos que vai seguir?
Eu diria, certamente que não, o Estado não deve intervir nestas decisões, ou regular seu funcionamento. Já os fundamentalistas religiosos têm convicção que sim. Segundo um dos seus representastes mais polêmicos hoje no Brasil [ix] as “crianças aprendem pelo exemplo. A homossexualidade é um desvio de costume, moralmente incorreta e, portanto, maléfica para toda a sociedade”. Segundo o pastor, permitir que as crianças tenham contato com exemplos de homossexualidade seria um desvio moral, prejudicial a sociedade e à família.
Aqui os dois maiores campos de disputa, onde as liberdades religiosas e os direitos sexuais e reprodutivos se chocam, desde sempre, aparecem nitidamente: o conceito de família e a questão da educação.
A educação sempre foi campo de disputa, inclusive constitucional, quando se debate a laicidade do Estado. De 1824 aos dias de hoje, todos os textos constitucionais debateram a laicidade, avançando, como nas constituições republicana de 1891 ou no texto de 1946, ou retrocedendo, como na Constituição de 1934 e de 1967-69 na questão da ocupação da escola por religiões e suas doutrinas.
Mesmo a Constituição de 1988, que debateu profundamente o assunto fez concessões no campo da educação, colocando, em seu art. 210, parágrafo 1o, ”o ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental”. [x] (grifo nosso).
Existe uma contradição no texto, explorada de forma muito eficiente e intencional por todos aqueles que defendem a religião como matéria importante para refrear o espírito livre da humanidade, que é justamente a colocação de uma matéria “facultativa” em “horários normais das escolas públicas”. Na prática o que acontece é que a matéria se torna praticamente obrigatória, já que as escolas não proporcionam alternativas para quem não quer assisti-la e, na maioria das vezes, sequer sabe desta “faculdade” em estar na sala de aula (maiores detalhes estão descritos em artigo publicado pela autora em livro resultante de Seminário de Diversidade Sexual na Educação do Espírito Santo).[xi]
O portal qedu.org, responsável pela divulgação dos dados da Prova Brasil, que faz o diagnóstico da Educação em todo o País indicou, na pesquisa de 2011, publicada em 2012 no site, que:
  • em 51% dos colégios há o costume de se fazer orações ou cantar músicas religiosas
  • 49% dos diretores entrevistados admitiram que a presença nas aulas das disciplinas religiosas é obrigatória.
  • 79% das escolas não há atividades alternativas para estudantes que não queiram assistir às aulas [xii]
Ou seja: onde está, verdadeiramente, sendo oferecida uma opção  às famílias e às crianças para que não assistam às aulas de religião?
Outra confusão recorrente é a ideia de que escolas confessionais (aquelas mantidas por entidades religiosas) não teriam a obrigatoriedade de oferecer um ensino laico. Isso é uma leitura não apenas tendenciosa, como absurda, já que o texto constitucional não abre nenhum tipo de exceção, afinal se o Estado é laico a educação deve, obrigatoriamente, também ser laica em todo o território nacional.
Dar permissão a uma escola ou universidade de confissão católica para que   opere na educação pública, não lhe dá o direito de fazê-lo doutrinariamente. A educação, mesmo nestas escolas continua sendo laica e não há que se falar em proibição, por exemplo, de tratar de temas como o aborto ou a homossexualidade. Da mesma forma, não podem os professores ser obrigados a ensinar o criacionismo bíblico, desmentindo o evolucionismo, ou serem obrigados a fazer, antes de cada período letivo, leituras bíblicas. A confissão de fé, em escolas particulares de orientação confessional, pode ser um princípio pelo qual a instituição se orienta. Mas a religião não pode ser uma imposição ao corpo discente e docente.
O mais curioso de tudo isso, quando falamos de educação laica é que a classe dos professores já foi, em outros momentos históricos, uma defensora ferrenha da educação e das liberdades laicas, mas hoje se omite frente a este importante debate que ocorre no Brasil. Ou pior, temos hoje um conjunto expressivo de professores que, por confissão de fé, fazem da sala de aula espaço de doutrinação e pregação de suas convicções religiosas, muitas vezes omitindo-se nos casos de bulling homofóbico e, em parte não insignificante de casos, sendo os próprios agentes deste tipo de violência e opressão[xiii].
Da mesma forma que na educação o conceito de família e todas as alterações que este conceito vem sofrendo nos últimos dois séculos é terreno de disputa por aqueles que querem impor sua fé sobre toda a sociedade. Para estes indivíduos família é a união de um homem e uma mulher, da qual resultam filhos (vejam a propagando do Partido Social Cristão no rádio e televisão durante o ano de 2012). Qualquer outra configuração, seja ela pela orientação sexual ou pelas circunstâncias de vida daquele grupo familiar é desconsiderado.
Neste arcabouço de possibilidades na constituição das chamadas novas organizações familiares aparecem irmãos que são responsáveis pela criação dos menores, avós que ficam com seus netos, famílias adotantes ou de relações homoafetivas, pais divorciados e seus novos companheiros/as e filhos resultantes destas novas relações, isso apenas para citarmos as situações mais comuns.
Contrariando a evolução social, mas em absoluta conformidade com o que já fizeram no passado, quando da discussão do divórcio, por exemplo, estes grupos se organizam para, em nome da família tradicional, barrar todo e qualquer avanço no direito destas novas configurações familiares, causando prejuízos, inclusive, às crianças que vivem nestas novas configurações familiares e que acabam ficando sem a proteção legal nos caso de morte de um dos companheiros que seja detentor de patrimônio legal, por exemplo, ou de separação dos casais.
Os exemplos de iniciativas legislativas que tentam barras os direitos civis de homossexuais que usamos anteriormente são, na maior parte das citações feitas, de caráter nacional e até internacional, como no caso da criminalização da homossexualidade em Uganda. No entanto existem no Rio Grande do Sul iniciativas de igual importância: O projeto do Dia do Nascituro, da Deputada Silvana Covatti - PP, que tramita na Assembleia Legislativa (PL 126/2013) ou a proposta existente na Câmara de Vereadores de Rio Grande transformando os cultos evangélicos em “patrimônio cultural imaterial” (lei ordinária n. 3408/2013, protocolado sob no. 72/2013 ) são dois exemplos de projetos que seguem uma lógica (orientação) religiosa e que vêm sendo multiplicados nacional e internacionalmente.
Existem iniciativas da mesma natureza em vários estados e em diversos países, o que demonstra a articulação que está  por trás destas iniciativas que, ao contrário do que muitos podem pensar, não são inocentes ou de perspectiva meramente social. São, pode-se deduzir, articuladas e têm um propósito definido: impor sobre toda a sociedade uma moral coletiva a partir de princípios e fundamentos religisos
Seria muito interessante ver a academia debruçada sobre este tema como objeto de estudo, a fim de que pudéssemos, de forma consistente, subsidiar nossas impressões com resultados científicos, demonstrando o quanto estas iniciativas estão conectadas.
Considerando todo o cenário exposto acima, é preciso que o movimento por direitos humanos, em especial o movimento de mulheres, negras e negros e LGBTT estejam atentos e articulados para uma reação igualmente coordenada. É preciso combater as iniciativas legislativas que restringem o conceito de família à visão tradicional (Estatuto da Família, PL 6583/2013), porque, em última análise, visam barrar os direitos civis de homossexuais.
É preciso apoiar iniciativas de avanços legislativos que equiparem relacionamentos afetivos-sexuais homossexuais aos relacionamentos heterossexuais de igual natureza, nos três níveis legislativos.
É preciso combater os crimes de ódio e a violência sexista e homofóbica, avançando, num primeiro momento, na legislação punitiva – através da aprovação da Criminalização da homo, lesbo e transfobia (PLC 122 a nível nacional), mas também de legislações anti-preconceito nos Estados e Municípios.
Mas principalmente é preciso ocupar espaços de debate acerca da Educação para a Diversidade nos Conselhos, nos Fóruns e na mídia (o que inclue as mídias tradicionais, como rádio e televisão, mas também inclui as mídias sociais, como blogs, comunidades e páginas na internet), reconquistando os espaços perdidos no debate do Plano Nacional da Educação, após as conferências Nacionais, e fazendo valer as diretrizes básicas por uma educação antiracista, não homofóbica e contrária ao machismo e ao sexismo.
Mas o mais importante é entender o quanto o debate sobre Liberdades Laicas e Fundamentalismos Religiosos está no centro destas discussões e dos avanços ou retrocessos que podem advir delas.
A sociedade moderna passa, mais uma vez, por um período de disputa acerca do conceito de laicidade. É nosso papel, enquanto movimento social, compreender as nuances desta disputa, os atores e atrizes que dela participam e os cenários fundamentais (no parlamento, na educação, no Judiciário e na mídia) onde esta batalha ocorre. Precisamos combate com coragem e efetividade os abusos que advém da utilização semântica utilitarista (sofismo) dos termos “liberdades religiosas” ou “liberdades laicas” por parte dos pastores, padres e fiéis fundamentalistas.
É preciso entender que este embate com os abusos feitos em nome da religião não fere a liberdade religiosa, como querem nos fazer crer, mas, ao contrário, se constitui em ferramenta para a defesa desta mesma liberdade religiosa e da fixação efetiva dos conceitos de Laicidade e de Liberdades Laicas na nossa sociedade.
A liberdade religiosa não pode ser utilizada como desculpa ou motivo para ferir outras liberdades, como o direito à igualdade, à vida, à livre circulação ou à manifestação pública de afetividade. A extrapolação da liberdade religiosa, quando atenta contra os direitos humanos por preconceito, é crime e pode ser tipificado quando faz apologia à violência, ao ódio, ou quando busca impor a invisibilidade ou a inferioridade social de mulheres, de negros e negras ou de LGBTTs.  É assim que o fanatismo religiosos deve ser encarado e tratado pelos ativistas de direitos humanos: como crime constitucional contra os direitos individuais[i].
Estejamos vigilantes às disputas (macros e micros) que acontecem todo o tempo e sejamos agentes das mudanças culturais, sociais, econômicas e religiosas que precisamos para a construção da sociedade que almejamos. Onde possamos ser, como já disse Rosa Luxemburgo, “Socialmente iguais, humanamente diferentes e totalmente livres” [ii]. O primeiro passo para isso é crer na laicidade como norma e na possibilidade de convivência entre diferentes como meta. O segundo passo é não recuar em nossa defesa da laicidade diante daqueles que avançam sobre ela para balizar suas teses e suas argumentações, torcendo seu sentido para favorecer sua visão de mundo.



[i] CF, artigo 5º. – Dos Direitos e Deveres Individuais e Coletivos
[ii]    Luxemburgo, Rosa - Frase atribuída à  -  filosofa e economista marxista polonesa , alemã, tornou-se mundialmente conhecida pela militância revolucionária ligada à Social-Democracia do Reino da Polônia e Lituânia



[1]    Estado Laico ou Secular: é um Estado que se mantém neutro em relação às questões religiosas, pois compreende que a fé é uma questão individual (Malavolta, Ana & Gil, Vanessa – Liberdades Laicas e a Vida das Mulheres - Caderno de Formação Feminista da Marcha Mundial das Mulheres, 2012)
[2]    Dicionário Online de Português - www.dicio.com.br/fundamento
[3]    Evolucionismo: Evolução, no ramo da biologia, é a mudança das características hereditárias de uma população de uma geração para outra. Este processo faz com que as populações de organismos mudem e se diversifiquem ao longo do tempo. ...http://pt.wikipedia.org/wiki/Evolucionismo
[4]    Criacionismo: crença na origem do Universo como resultado de uma criação, normalmente por parte de uma inteligência superior (ex.: Deus)http://pt.wiktionary.org/wiki/criacionismo
[5]    Projeto de Lei Ilhéus – Bahia, questionado e aguardando decisão do MP – mas existem iniciativas semelhantes em vários municípios e em outros países, como em El Salvador.




[i]     Processo Administrativo TJ-RS 0139110003480  - publicado na íntegra em www.liberdadeslaicasrs.blogspot.com.br
[ii]    Dados extraídos da leitura de João Bernardino Gonzaga: A Inquisição em Seu Mundo, Editora Saraiva, 1994
[iii]   RUETHER, Rosemary Radford – Fundamentalismos Religiosos, out. 2003
[iv]   RUETHER, Rosemary Radford – Fundamentalismos Religiosos, out. 2003
[v]    Para saber mais sobre o tema, ver textos de Pe. Helminiak (Daniel A.) e estudos de John Boswell (Prof. e Historiador, Universidade de Yale) e de L. William Countryman, Prof. Teologia - Novo Testamento em Berkeley - USA). O  Padre Helminiak teve um livro censurado pela Igreja Católica e que foi proibido, por decisão judicial, de circular durante um tempo, em função das revelações que fazia acerca da leitura e interpretação de textos Bíblicos pela Igreja.
[vi]   Silas Malafaia, pregação em curso dominical – igreja do RJ, aos 18min15s (http://www.youtube.com/watch?v=_M9Z2Ad01xc,  publicado em 11/06/2012).
[vii]  ASP, E. RAMCHANDRAN, K. TRANEL, D. Uniformitarianismomomomomomomo, religious fundamentalism, and the human prefrontal cortex. Neuropsychology, vol. 26, n° 4, 2012
[viii] Pérez Jaime, Bárbara; Amadeo, Javier. O conceito de liberdade nas teorias políticas de Kant, Hegel e Marx.
[ix]   Silas Malafaia, pregação em curso dominical – igreja do RJ, primeiros 10min (http://www.youtube.com/watch?v=_M9Z2Ad01xc).
[x]    Constituição Federal, 1988 – art. 210
[xi]   Pinel, Iran & Mendonça, Cristovam – organizadores – Diversidade Sexual – Silêncio, Diálogo & Currículo: Malavolta, Ana Naiara – Liberdade(s) Laica(s) e Fundamentalismo(s) Religioso(s) na Educação, 2013.
[xii]  www.qedu.org.br/ - prova Brasil 2011
[xiii] Ver Artigo da autora em Pinel, Iran & Mendonça, Cristovam – organizadores – Diversidade Sexual – Silêncio, Diálogo & Currículo: Malavolta, Ana Naiara – Liberdade(s) Laica(s) e Fundamentalismo(s) Religioso(s) na Educação, 2013.

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