quarta-feira, 24 de março de 2010

Entrevista de Tica Moreno para Viomundo

Por Conceição Oliveira


A violência contra as mulheres deve ser entendida como uma questão política, social e cultural. Feminicídio, o extremo desta violência, é um termo político utilizado para designar o crime cometido por um homem contra uma mulher a quem considera de sua propriedade e na maioria dos casos ele é praticado por homens que têm vínculo familiar ou afetivo com a vítima.

Feminicídio é um grave problema na América Latina. De acordo com dados do Observatório Cidadão do Feminicídio mexicano, só em 2009, no México, ocorreram 529 assassinatos de mulheres em oito estados daquele país, enquanto dados registrados pela Procuradoria de Direitos Humanos da Guatemala informa que 720 mulheres foram assassinadas e para o mesmo ano em El Salvador 579 mulheres, de acordo com o Instituto de Medicina Legal que registra ainda para os meses de janeiro e fevereiro de 2010, 40 mulheres assassinadas.

As líderes hondurenhas denunciam que após o golpe em Honduras a violência contra a mulher aumentou, e o estupro empreendido por militares virou arma contra a resistência. Lá, de acordo com o Centro de Estatística da Suprema Corte de Justiça, 405 mulheres foram assassinadas em 2009.

Na Nicarágua feministas da rede Mulheres Contra a Violência denunciam o mesmo grau de violência. Na Argentina 231 mulheres e meninas foram mortas de acordo com Relatório de Investigação sobre Femicídios na Argentina para o ano de 2009 (Dados: Adital/ Feminicídio)

E no Brasil? Qual é a nossa realidade? Existem estatísticas de feminicídio? A Lei 11340/2006 aprovada em 2006, mais conhecida Lei Maria da Penha, representou diminuição nas estatísticas do assassinato de mulheres pelos seus companheiros?

Entre 8 e 18 de março ocorreu, também no Brasil, a Marcha Mundial das Mulheres, um movimento internacional que tem como uma de suas principais pautas o combate à violência contra a mulher.

Para falar sobre esse movimento e suas causas o Blog da mulher/ Viomundo convidou a socióloga Tica Moreno, integrante da equipe técnica da SOF – Sempreviva Organização Feminista. A SOF é uma ONG que faz parte da coordenação executiva da MMM – Marcha Mundial das Mulheres – e atua com formação feminista e fortalecimento da auto-organização das mulheres e do feminismo nos movimentos sociais. Tica Moreno foi uma das organizadoras da MMM que acaba de ser realizada no Brasil.

Segundo Tica Moreno, no Brasil os dados mais precisos que existem são sobre a violência sexista em geral e violência doméstica, não há dados sistemáticos sobre feminicídio como existem na América Central e outros países da América Latina.

Em relação à Lei Maria da Penha ela avalia:

“Infelizmente ainda não podemos afirmar que no Brasil os números de violência sexista em geral e de assassinatos de mulheres, especificamente, diminuíram. A existência de uma legislação específica – a Lei Maria da Penha – fez com que maior número de mulheres denunciassem os casos de violência. Isso não significa necessariamente um aumento da ocorrência da violência, mas maior procura pelo atendimento. A nossa avaliação é que a Lei é um instrumento importante no combate à violência contra as mulheres, mas que é necessária uma transformação profunda nas relações entre homens e mulheres para que possamos erradicar esta violência. Por isso temos denunciado a violência sexista como um pilar da sociedade patriarcal, que tem raiz no machismo e na misoginia, e buscamos apontar todas as suas expressões, seja a violência física e sexual, o assédio ou a exploração na indústria da prostituição e do tráfico de mulheres.

Para acabar com a violência contra as mulheres é preciso por um lado, uma atuação concreta dos governos e do Judiciário na prevenção da violência e punição aos agressores e, por outro, alterações concretas na vida das mulheres, com a garantia de autonomia. Nada justifica a violência sexista e, enquanto uma mulher for vítima de violência, estaremos em marcha.”


Viomundo: O que é a Marcha das Mulheres, há quanto tempo ela existe?

Tica Moreno: A Marcha Mundial das Mulheres (MMM) é um movimento feminista internacional, que teve início em 2000, em uma campanha que reuniu mais de 5 mil grupos de mulheres de 159 países e territórios em uma ação comum contra a pobreza e a violência sexista. Esta ação teve como característica trazer o feminismo popular e militante de volta às ruas, o que impulsionou as mulheres a dar continuidade a Marcha não como uma campanha, mas como um movimento permanente.

Viomundo: Faça um balanço do movimento MMM durante a sua primeira década de existência.

Tica Moreno: Nesses 10 anos, muita coisa aconteceu. A MMM se consolidou como um movimento, com coordenações nacionais organizadas e articulação de lutas em nível local, nacional e internacional. No Brasil, por exemplo, a cada ano temos mais estados envolvidos na construção cotidiana da Marcha, e nesta ação de 8 a 18 de março tivemos a presença de mulheres de todos os estados.

A proposta de realizar uma verdadeira marcha surgiu em nível internacional, inspirada na Marcha Pão e Rosas*, realizada em 1995 pelas mulheres do Quebec (que depois, em 2000, foram as impulsionadoras da MMM). Esta foi uma proposta de formato para a nossa 3a ação internacional (realizamos uma a cada 5 anos), e dividimos esta ação em 2 períodos, de 8 a 18 de março, e de 7 a 17 de outubro (por questões climáticas inclusive, em vários países esse primeiro período é marcado por muita neve e fica impossível marchar). Este ano a ação foi realizada em pelo menos 51 países, em formato de marchas simultâneas, manifestações em diversas cidades, algumas foram passando em cidades de trem, como no Paquistão.

Viomundo: E como a Marcha Mundial das Mulheres é realizada aqui no Brasil, como é possível organizar a participação de milhares de mulheres durante tantos dias em marcha?

Tica Moreno: Nós aqui no Brasil logo nos animamos a construir esta marcha de 10 dias (na verdade 10 noites e 11 dias) e começamos a nos organizar ano passado. Toda a Marcha foi construída por mulheres organizadas em equipes: infra-estrutura, distribuição de água, saúde, comunicação, formação e cultura, cozinha, segurança. A marcha saiu de Campinas e chegou em São Paulo, passando por Valinhos, Vinhedo, Louveira, Jundiaí, Várzea Paulista, Cajamar, Jordanésia, Perus e Osasco. A equipe de cozinha ficou em Cajamar, e preparavam todos os dias a comida, que viajava em caminhões para o almoço e jantar.

Viomundo: Quem participa da marcha, que grupos de mulheres, entidades?

Tica Moreno: Participaram da marcha mulheres jovens, indígenas, negras, rurais, urbanas, lésbicas, sindicalistas unidas com o mesmo objetivo de mudar o mundo para mudar a vida das mulheres em um só movimento. Com relação às entidades, participaram da organização as mulheres da CUT e da Contag, que são parte da coordenação nacional da MMM no Brasil, e mulheres de movimentos parceiros, como o MST, a UNE e o MMC.

Viomundo: Quais são as principais lutas das mulheres brasileiras representadas na MMM?

Tica Moreno: Nossa plataforma foi construída a partir dos campos de ação da marcha internacional (violência contra as mulheres; paz e desmilitarização; bens comuns e serviços públicos; trabalho e autonomia econômica), que aqui no Brasil se traduziram em questões que dialogam com a realidade das mulheres brasileiras, como a necessidade de garantir creches publicas, a descriminalização do aborto, a reivindicação de que o judiciário tenha outra postura frente à violência contra as mulheres, o combate à mercantilização de nossos corpos seja na publicidade ou no tráfico de mulheres e prostituição. (a plataforma tá no site www.sof.org.br/acao2010).

Viomundo: Tica, você que participou ativamente da Marcha, além do preparo físico extremamente necessário, quais foram as suas impressões?

Tica Moreno: Os 10 dias foram difíceis, mas demonstraram a força das mulheres organizadas.
Todas as mulheres tiveram que vencer o desafio de caminhar entre 8 e 14 quilômetros por dia, participar da formação feminista, contribuir com a organização do alojamento, a limpeza da cozinha, além de ter sido um momento de intenso intercambio de experiências de vida, luta e sonhos entre as mulheres de todo o Brasil.
A recepção das mulheres nas cidades foi muito positiva, muitas mulheres aplaudiam, cantavam as músicas juntas, liam atentamente nosso jornal. Nosso objetivo é que em cada uma dessa cidade a MMM continue a ser organizada com estas mulheres. Claro que vez ou outra um ou outro motorista de carro chique na estrada, ou na rua mesmo, dizia que tínhamos que ir trabalhar, mas todas as mulheres respondiam com nossas palavras de ordem (tipo: “João, João, cozinha o seu feijão”).

Enfim, afirmamos nestes dias o nosso lema internacional, de que “Seguiremos em marcha até que todas sejamos livres”, e demonstramos na prática que o feminismo ainda é necessário e que estamos construindo a cada dia um feminismo popular, de todas as mulheres para conquistar liberdade, igualdade e autonomia.

Viomundo: Este ano teremos ao menos duas mulheres disputando as eleições presidenciais. Sabemos que o movimento feminista não é essencialista, mas o que tem de positivo nesta disputa, o que se cobrará destas candidatas?

Tica Moreno: A gente sempre afirma que a participação das mulheres na política é fundamental para efetivar políticas que alterem a vida das mulheres, mas que é preciso que estas mulheres na política estejam comprometidas com esta pauta feminista. E que as políticas para as mulheres não são isoladas, mas parte de um projeto global. Por isso, não votamos em qualquer mulher só por ser mulher, votamos em um projeto político que tenha como orientação o combate a todas as formas de desigualdade e a construção de uma sociedade mais justa.

Nota do Viomundo: Marcha Pão e Rosas*: Em 1995, 850 mulheres caminharam cerca de 200 quilômetros de Quebec a Montreal lutando contra a pobreza e o sexismo e foram recebidas por mais de 15 mil pessoas em frente à Assembléia Nacional.

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